segunda-feira, 5 de setembro de 2011

E AÍ, TEM JEITO? O Trânsito


E AÍ, TEM JEITO? O Trânsito



Entre 1975 e 1999, a população de São Paulo aumentou 39,4%. No período, a frota de carros na cidade cresceu quase dez vezes mais: 345,9%. Em Los Angeles, avenidas com dez faixas estão entupidas. As ruas de algumas cidades européias chegaram ao limite de circulação. E uma pesquisa publicada em 2004 mostrou que a cada doze ataques cardíacos masculinos, um tem relação com engarrafamentos - culpa da associação de estresse e contato com poluição. Em Bangcoc, Tailândia, a velocidade média no horário de rush é de 3,4 quilômetros por hora - segundo a revista The Economist, motoristas têm garrafas plásticas à mão para poderem urinar quando presos no trânsito.

Tudo isso para podermos viajar no conforto de um automóvel particular. Um conjunto desproporcional, que para cada dez litros de combustível consumido gasta 9,5 movendo a si próprio - as pessoas que vão dentro usam apenas o 0,5 restante. Qual o caminho para fugirmos desse caos? Especialistas apontam duas rotas: a primeira é seguir o modelo europeu, investir no transporte público e deixar a vida de quem dirige cada vez mais difícil. A segunda é, como fazem os americanos, encampar a cultura do carro e arranjar soluções alternativas, com idéias inovadoras e tecnologia, para que o trânsito flua melhor. Qualquer que seja a escolha, alguém vai ganhar - mas alguém do outro lado vai sair perdendo.



O caminho europeu

Você já deve ter ouvido falar da maravilha que é o sistema de transporte público na Europa. Que o metrô de Paris tem um número tão grande de estações que sempre se está a 500 metros de uma delas. Que o famoso ônibus de dois andares londrino é pontualíssimo. Que as linhas foram planejadas, muito bem pensadas e funcionam há cerca de cem anos.

Tudo isso é verdade. O problema é que, mesmo com essa infra-estrutura, desde os anos 1970 os congestionamentos são um problema grave no velho continente. A venda de carros não pára de crescer. As cidades têm estruturas medievais e não suportam mais expansão em suas malhas viárias. E, por mais eficiente que seja, o transporte público não consegue atrair uma grande parcela dos motoristas - aqueles que simplesmente não querem abandonar a comodidade do automóvel particular.

Os governantes concluíram que, para superar o entrave, precisariam não apenas oferecer transporte público de qualidade, mas recheá-lo de vantagens. Na Alemanha, metrôs, bondes e ônibus passaram a funcionar com bilhetes promocionais que dão direito a ingressos mais baratos para eventos culturais e esportivos. Em Viena, na Áustria, quem compra uma passagem válida por um ano tem 50% de desconto no aluguel de carros nos fins de semana.

Essas vantagens, no entanto, não solucionaram o problema. E os planejadores perceberam que não basta apenas dar com uma mão; é preciso tirar com a outra. Resolveram atazanar a vida de quem não fosse seduzido pelos atrativos do transporte público: subiram os impostos dos combustíveis, regularam a circulação e aumentaram o preço dos estacionamentos e pedágios urbanos. Surgiram soluções como a de Munique, onde as restrições para estacionar no centro são tantas que é praticamente impossível encontrar vaga. E, numa inversão da lógica pregada por aqui, desde 1995 novos prédios só podem ser construídos se não oferecerem garagens. A idéia é desestimular o uso do carro, impedindo o motorista de deixar o automóvel perto do local aonde pretende ir.

Combinando punições para quem anda de carro e benefícios para os que optam pelo transporte coletivo, a Europa tem conseguido, lentamente, reduzir os congestionamentos de veículos. Em Londres, na Inglaterra, onde foram instalados pedágios no centro da cidade, os engarrafamentos caíram 20% e os cofres da prefeitura engordaram 70 milhões de libras (cerca de 340 milhões de reais) em 2003, primeiro ano da experiência. O dinheiro é reinvestido em novas ruas e melhoria do transporte público - que ficou mais eficiente. Segundo o consultor de transportes Derek Turner, responsável pela implementação do sistema, o tempo de viagem nos ônibus foi reduzido em 20% e o número de passageiros aumentou 14%.



O caminho americano

A experiência européia mostrou que, sozinha, a pregação do bem-estar coletivo não é suficiente para convencer motoristas a abandonar suas vantagens. Revelou, também, que sem concessões individuais a aposta no transporte coletivo não funciona - por isso a decisão de obrigar os motoristas a colaborar. O problema é que, para alguns especialistas, proibir o uso do carro é um ataque ao direito de ir e vir. Em um artigo publicado há cinco anos, o professor da Universidade de West Virginia Ralph W. Clark via problemas no modelo europeu e desconfiava das motivações daqueles que preferem ônibus e metrôs. Para ele, o que funciona não são as políticas de trânsito, mas as de bolso. "Os europeus têm essa opinião porque lá as pessoas pobres e de classe média não conseguem comprar um carro", afirma.

Clark tem alguma razão. Nos Estados Unidos, carro e gasolina são mais baratos que em qualquer outro país. Desde 1903, quando Henry Ford abriu a primeira fábrica de produção em larga escala, o automóvel está totalmente incorporado ao cotidiano americano. Por lá nunca se investiu muito em transporte público: a idéia era dar condições financeiras para que todos tivessem carro. Anthony Downs, urbanista americano autor de Stuck in Traffic ("Preso no Trânsito", sem tradução em português), afirma que o congestionamento é um efeito de desenvolvimento econômico e "o preço a pagar pela variedade de opções de trabalho e diversão". A solução para o congestionamento? Segundo Downs, um carro com ar-condicionado, toca-CD e viajar em boa companhia.

A paixão dos americanos pelo automóvel resultou no desenvolvimento horizontal das cidades. Com os carros atingindo velocidades cada vez maiores, muita gente foi morar em subúrbios distantes do centro. E como essas cidades-satélites são pouco densas, o transporte coletivo nunca deu lucros. Assim, governos priorizaram a construção de rodovias de alta velocidade, que ligam o centro às cidades menores.

Mesmo largas e com limites de velocidade elevados, essas pistas estão saturadas. O número de carros por habitante, cerca de 0,85, é o mais alto do mundo - há mais automóveis do que motoristas habilitados. A meta da atual geração de planejadores, portanto, é utilizar ao máximo a estrutura existente, melhorando seu desempenho com altas doses de tecnologia. Dinheiro não parece ser problema.

Chicago, por exemplo, está se inspirando nos sistemas de trânsito de Cingapura, pioneira na adaptação da alta tecnologia ao tráfego. A idéia é utilizar semáforos capazes de verificar o fluxo e determinar o tempo que a luz verde ficará acesa, e câmeras com fibras óticas para monitorar o tráfego. Os dados são transmitidos para uma central que os compila e os põe à disposição dos motoristas. Com isso, pretende-se tornar a previsão do tráfego tão importante na vida das pessoas quanto a meteorologia - mas um bocado mais eficaz.



O caminho brasileiro

Na maioria das grandes cidades brasileiras, ter um carro é a carta de alforria contra ônibus antigos e lotados. Para entender como chegamos a tal ponto, um flashback é preciso. Até os anos 1950, bondes e trens eram os transportes mais populares. As distâncias a percorrer eram pequenas e o sistema público atendia às necessidades da maioria. Incomodava, porém, quem tinha dinheiro para importar carros. Esses queriam mais espaço na rua. Afirmavam que bondes "atrapalhavam o trânsito".

A campanha fez das charretes símbolo de atraso. Os trenzinhos perderam o glamour. E o projeto de Brasília mostrou fortes influências do urbanismo americano: cidade pouco densa, pistas largas e grandes distâncias. Feita para quem tem carro.

A popularização do automóvel significou o quase abandono do transporte coletivo. Essa estrada só mudaria de rumo nos anos 1990, quando prefeituras apostaram na melhoria do transporte público como solução para os congestionamentos - Curitiba foi a maior vitrine. A receita consistia na adoção de bilhetes que valem por mais de uma viagem, pistas de ônibus exclusivas e uma tabela de horários confiável.

Em todos os lugares com experiências semelhantes, os engarrafamentos caíram. A lógica é simples e foi demonstrada em estudo do urbanista e consultor de transportes Eduardo Vasconcellos. Quem se desloca de carro necessita de oito vezes mais espaço que os passageiros de ônibus. O problema é que privilegiar o coletivo mexe no bolso - e na paciência - dos donos de automóvel. Construir linhas de metrô custa muito. "Quem tem carro sempre reclama. Mas as pessoas precisam ter consciência do que é melhor para a cidade. O transporte coletivo ajuda a consolidar o espírito comunitário", diz Antonio Ferraz, professor de Engenharia de Trânsito da USP e co-autor do livro Transporte Público Urbano.



O caminho da ciência

Não importa a escolha política - privilegiar automóveis ou o transporte público - cientistas e administradores têm gastado cada vez mais tempo em pesquisas contra engarrafamentos. E já despontam novas propostas e mentalidades para o problema, com alguns resultados animadores.

A experiência mais radical da nova escola de engenharia de trânsito foi feita no interior da Holanda, em cidades como Drachten, com 40 mil habitantes. A prefeitura removeu calçadas, placas, faixas das pistas e substituiu semáforos por rotatórias. A idéia é tornar as ruas mais perigosas e deixar os motoristas decidirem quem tem a preferência e como o trânsito flui. Por instinto e segurança, dirigem mais devagar. Pode parecer estranho, mas a experiência rendeu menos acidentes e ruas mais amigáveis para pedestres. Alguns desses princípios estão sendo adaptados em cidades grandes. Em Turim, na Itália, semáforos foram trocados por rotatórias. Com motoristas regulando o fluxo e sem intervalos em que nenhum carro atravessa o cruzamento porque a luz está vermelha, os congestionamentos em algumas vias foram reduzidos em até 75%, segundo a revista Focus.

Outra idéia, adotada na cidade de West Palm Beach, na Flórida, é o "vá devagar para chegar mais depressa". A lógica é a seguinte: a maior parte dos engarrafamentos acontece nos enervantes "gargalos", que você já deve conhecer. "Gargalos" são aqueles epicentros de engarrafamentos, como semáforos ou estreitamentos de pista, onde os carros têm de reduzir a velocidade. A solução seria fazê-los chegar mais lentos a esses pontos críticos. Com menos veículos em um gargalo, o trânsito fluiria melhor - e mais rápido.

Em algumas cidades da Europa, a idéia é mudar hábitos dos cidadãos. Na França, uma das principais ações é a adoção de jornadas de trabalho flexíveis, aliviando os horários de pico. Na Ásia, onde o rápido crescimento econômico lotou as ruas de automóveis, a aposta é em alta tecnologia. À frente dos testes está Cingapura, que automatizou o sistema de trânsito, com centenas de câmeras monitorando o tráfego e transmitindo informações sobre a velocidade média das pistas em tempo real. Lá, não é preciso rezar para o helicóptero de uma emissora de rádio sobrevoar por milagre o caminho que você pretende fazer. Qualquer pessoa, a qualquer momento, consegue verificar por celular e internet quais as vias congestionadas e quais estão livres para o trânsito.
Parece interessante. Mas há quem ache um bocado desnecessário. Alguns especialistas acreditam que estamos rumando para a calmaria, não para a tragédia. "Em 20 anos, boa parte do sistema de transporte vai ser substituído pela tecnologia das comunicações. As escolas poderão ir às pessoas, haverá reuniões por videofone e por aí vai", afirma o professor de engenharia do trânsito da Universidade de Brasília José Alex Santana. Quando isso acontecer, precisaremos sair menos de casa ou do escritório. Estudos mostram que o número de viagens per capita diminui quando o acesso às telecomunicações aumenta. "No extremo, podemos dizer que o transporte com maior comodidade é aquele que não precisa ser realizado", diz Antonio Ferraz. Para quem passou o dia preso em um engarrafamento, parece música para os ouvidos. É como trocar o falatório infernal dos boletins de trânsito no rádio do carro pelo disco da sua banda favorita.


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