sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Duelo ao Pôr do Sol - Natureza


DUELO AO PÔR-DO-SOL - Natureza



Nos recifes de coral, o entardecer é um tempo de conflito: a luta pela vida, exacerbada, mobiliza as energias de presas e predadores, peixes a caminho do repouso e outros que despertam para a noite

Os seres humanos são criaturas de hábitos diurnos. Essa observação, em si mesma, pode não significar muita coisa, mas tem algumas implicações para aqueles que se interessam em conhecer melhor os recifes de coral. A maioria dos mergulhadores, com ou sem cilindros de ar comprimido e demais equipamentos, se lança ao mar dia claro, digamos entre 9 da manhã e 3 da tarde. Ora, como uma visita a qualquer ambiente subaquático, seja qual for o traquejo do visitante, é sempre uma incursão por uma região fundamentalmente estranha de um mundo não domesticado, faz sentido. Mergulhar de dia é mais seguro porque permite enxergar melhor. A desvantagem é que, por maravilhoso que o recife de coral pareça durante o dia, só se tem nessas horas uma visão incompleta do que acontece ali.
Ao meio-dia, o recife está quase adormecido. Peixes diurnos de vivo colorido vasculham a área à procura de algas e de plâncton para comer. Anêmonas rosadas seguem preguiçosamente a correnteza atrás de uma refeição que esteja de passagem. Os duros corais estão em repouso, seus pólipos firmemente enrolados. E, mesmo predadores como o oportunista peixe trombeta (Fistularia tabacaria), que não é especialmente exigente quanto ao cardápio, exibem o seu melhor comportamento. Todos conhecem as regras; todos sabem o que esperar; todos mantêm uma distância segura do perigo. O resultado é uma aparência de paz capaz de induzir o mergulhador à conclusão de que o recife de coral é tão aprazível para seus habitantes quanto para os turistas que o vêem como um pedaço do paraíso.
Até a investida ocasional de um cardume de vorazes xaréus (Caranx) ou de uma solitária e veloz barracuda (Sphyraena barracuda), um acontecimento que dispersa os peixes dos corais num relâmpago de medo e fuga, mal consegue dissipar a impressão de que o coral é um lugar sossegado, uma espécie de santuário marinho onde reina a ordem. Regra geral, a impressão é correta. Como nós, os bichos se organizam de acordo com determinadas rotinas, obedecem a padrões de comodidade que evitam o desperdício de energia. Os peixes precisam de tempo e de atenção para alimentar-se e procriar; em conseqüência, as relações entre as criaturas dos corais são quase sempre estáveis. E isso vale também para o grupo de bichos que circula por ali à noite, os peixes de hábitos noturnos e os invertebrados que às vezes podem ser encontrados dormindo nas reentrâncias e fendas do coral.
De fato, na maioria das vezes, os mergulhadores percebem peixes diurnos repousando tranqüilamente em muitos dos mesmos dormitórios usados durante o dia pelos peixes noturnos. Quase nada, em pleno dia ou à noite fechada, desfaz a sensação de paz que ali se vislumbra. Visite-se, porém, o recife durante a "mudança de turno", o período entre a claridade e a escuridão, a hora em que a luz está partindo - e aquela sensação de tranqüilidade irá desaparecer. Cerca de uma hora antes do crepúsculo, quando os raios de sol incidem bem obliquamente na água, ocorre entre os peixes um aumento de atividade que parece corresponder a um aumento de ansiedade. Há um forte motivo para isso: o período crepuscular é tempo de intensa atividade no cotidiano dos animais ictiófagos, os que se alimentam de peixes. Eles se aproveitam da diminuição da luz para atacar não só os peixes a caminho das tocas onde costumam passar as noites, como principalmente os que, ainda sonados depois de um bom dia de descanso, deixam esses mesmos esconderijos.
Peixes-lagartos ( Synodus intermedius ), garoupas (Epinephelus morio ), os já mencionados xaréus e barracudas, badejos (Mycteroperca Gill), mangangás (Scorpaena plumieri) e outros predadores oportunistas tornam-se especialmente ativos durante o crepúsculo, quando a inclinação dos raios solares ressalta a silhueta dos bichos marinhos, facilitando muito a caça. Disso sabem muito bem os aficionados da pesca (para não falar nos pescadores profissionais) que anos a fio abrem mão do jantar em família para estar na água ao anoitecer.
É quando os peixes que passaram o dia se alimentando do plâncton suspenso na água começam a se reunir e a tomar o rumo do recife. Cardumes de barbeiros (Acanthurus coeruleus), bodiões (Sparisoma viride) e salmonetes (Mulleidichtys martinicus), entre outros, que haviam deixado o recife pela manhã para uma jornada dedicada à caça e/ou ao acasalamento, regressam então aos seus esconderijos noturnos.
A viagem de volta é bastante diferente das excursões diurnas ao redor do recife. Na ida, sem pressa, os peixes gastam sossegadamente o tempo a explorar recantos promissores, intrometendo-se em territórios alheios, xeretando em torno de uma cabeça-de-coral. Já no regresso, o tempo é valioso, a viagem é a sério. Tudo o que esses peixes querem é chegar logo em casa; por isso usam a mesma rota dia após dia. Tal rotina, embora economize esforço, torna esses migrantes diurnos vulneráveis aos astutos caçadores do crepúsculo, de tocaia ao longo de tais rotas, que engordam à custa dos viajantes. Os barbeiros, por exemplo, juntam-se ao anoitecer em cardumes compactos e seguem pelo fundo a toda a velocidade, por um caminho previsível, rumo à proteção do recife. Os retardatários, obviamente os mais vulneráveis, aceleram o nado para alcançar o cardume a fim de não serem apanhados sozinhos por um esperto, atento devorador de peixes.Não surpreende que os peixes diurnos fiquem irritadiços, sendo comuns entre eles as perseguições e as exibições de agressividade, sobretudo quando está em disputa um lugar de repouso. Ao anoitecer, por causa dessa ansiedade exacerbada, é especialmente difícil fotografar peixes. Assustados com o mergulhador e ainda mais com as luzes, não ficam quietos durante os dez segundos muitas vezes necessários para serem fotografados.
Esse período de elétrica inquietação não dura muito, porém. Passados dez minutos do pôr-do-sol, quase todos os peixes diurnos já encontraram abrigo e há um breve período em que todo o recife fica calmo. Enquanto a turma do dia corre a se esconder, a turma da noite acorda devagar e emerge cuidadosamente de seus esconderijos. Uns trinta minutos antes do pôr-do-sol, predadores noturnos, como o fogueira (Myripristis jacobus) e o jaguareçá (Holocentrus refus), vagarosamente começam a se arrastar para fora do recife, mas se comportam como se de alguma forma um fio invisível os mantivesse ligados a ele. Tais peixes são tipicamente cor de ferragem, vermelho-escuros ou ainda cor de cobre, tonalidades que tornam difícil enxergá-los na água noturna praticamente opaca onde se movem. É notável, ao se olhar para baixo ao longo da parede do recife de coral, no momento em que a luz diminui, o aparecimento dessas manchinhas avermelhadas, prestes a sair para mais uma noitada.Ao contrário dos peixes diurnos, que habitualmente se alimentam perto da proteção do recife, algumas espécies de hábitos noturnos não raro percorrem grandes distâncias em busca de comida. Muitos passam a o noite banqueteando-se com a relativa abundância de plâncton que se ergue das profundezas quando o sol se põe. Outros, como as corcorocas (Haemulon flavolineatum) que emitem um som que lembra um cacarejo, deixam o recife e se deslocam para leitos cobertos de vegetação onde se nutrem de invertebrados.
Para assegurar que seus passeios não atrapalhem a discrição, eles mudam de cor, trocando as listas vivas por um traje mais apagado de pois borrados. Mas, como percorrem invariavelmente os mesmos caminhos de saída do recife, corcorocas e outros peixes noturnos também ficam vulneráveis às investidas dos predadores oportunistas. Peixes-lagartos, de tocaia ao longo do percurso habitual das corcorocas, jantam os mais fracos e mais jovens; embora as presas se mantenham perto do fundo para serem menos visíveis à luz poente, muitas cometem erros fatais com freqüência suficiente para manter o nível das populações de peixes-lagartos e outros predadores.
Assim como as corcorocas garantem o sustento dos peixes-lagartos, a piaba do mar (Pempheris schomburgki), outro peixe noturno, é o manjar predileto dos peixes-trombetas e dos badejos. Na verdade, apesar da extrema ansiedade dos peixes diurnos de regresso ao fim do dia, tudo indica que os predadores do crepúsculo preferem os peixes de hábitos noturnos que se aventuram pelas águas perigosas ao redor do recife logo após o pôr-do-sol. O fato de que muitos peixes diurnos são herbívoros e de que a maioria dos noturnos é carnívora leva a suspeitar, com razão, de que a população de invertebrados muda junto com a de peixes quando anoitece.
Muitos crustáceos, vermes marinhos, estrelas-do-mar e moluscos saem à noite, para virar comida de raias (Dasyatis say), jaguareçás e outros peixes noturnos. Um mergulho à noite poderá revelar também ofiuróides enfrentando a corrente com seus longos braços preênseis e sensíveis à luz; lírios-do-mar encarapitados em esponjas ou cabeças de coral; lagostas, ofiúros, ceriantos e ouriços-do-mar raspando algas das pedras e de outras superfícies duras - e, é claro, o recluso polvo, talvez o mais impressionante e assustador invertebrado que se pode encontrar em um mergulho noturno. A "mudança deguarda" entre os invertebrados também ocorre durante o periado crepuscular, mas não parece caracterizar-se por um estado de ansiedade comparável ao dos peixes. Nada a estranhar nisso, dada a simplicidade do sistema nervoso da maioria dos invertebrados. Talvez os filósofos sejam capazes de responder se é preferível passar da claridade às trevas com o apático destemor dos camarões e dos lírios-do-mar ou com a frenética ansiedade dos barbeiros. Para os naturalistas, já é recompensa bastante observar as mudanças que os períodos crepusculares produzem nos recifes de coral.


Nenhum comentário:

Postar um comentário