sexta-feira, 23 de maio de 2014

Nosso Ancestral ? Esse Micróbio ? - Evolução

NOSSO ANCESTRAL? ESSE MICRÓBIO? - Evolução


Um pesquisador francês muda os rumos da discussão sobre a identidade do primeiro ser vivo da Terra, o micróbio fundamental. A hipótese predominante dizia que ele era amigo das altíssimas temperaturas. Agora, o professor Paul Forterre diz que não, o bicho não era tão quente assim.



Por volta de 4 bilhões de anos atrás, a superfície da Terra era um inferno horroroso, assolado por centenas de vulcões ativos e bombardeado por grandes meteoros. Mas isso não impediu que os micróbios aparecessem. Segundo a hipótese mais aceita, eram seres infernais: habitavam fendas fumegantes, por onde jorrava vapor de água carregado de sais minerais. Alimentados pelo caldo forte e aquecidos pelo forno interior da Terra, aqueles seres não precisaram da energia do Sol para viver, ao contrário da grande maioria dos seus sucessores.
Bem recentemente, em 1977, foram descobertos micróbios subterrâneos bem parecidos - e bem vivos. São bactérias: os termófilos (se agüentam bem até 80°C) ou hipertermófilos (chegam aos 110°C). No final do ano passado, descobriu-se mais. Que a quantidade desses amigos do calor é tão grande que, em peso, pode ser maior do que a de todos os outros animais e plantas somados. A descoberta foi pura lenha na fogueira e inflamou ainda mais a hipótese de que nossos ancestrais biológicos ferviam. Os herdeiros encontrados seriam as provas candentes da existência dos antepassados.
Foi então que o microbiologista Paul Forterre, da Universidade Paris-Sul, ao lado de alguns outros cientistas, teve a coragem de desafinar o coro acalorado. Primeiro por telefone e depois por fax, ele deu à SUPER detalhes de suas conclusões, explicando por que considera prematuras as conclusões da maioria. Para ele, não é nada disso: "O ancestral universal deve ter sido muito diferente das células atuais. No modelo que eu proponho, o ancestral universal teria sido um mesófilo (que gosta de temperaturas de cerca de 40°C)."
Além do professor Paulo Forterre, a SUPER entrevistou também alguns dos mais importantes cientistas envolvidos no debate. O maior desafio na busca do micróbio (definido como qualquer organismo mil vezes menor que um milímetro) fundamental é achar um tronco para a árvore genealógica de todos os seres, dos insetos às baleias azuis, passando pelas famílias de cada um de nós. São conhecidos três grandes galhos: o das bactérias, o das arqueobactérias e o dos eucariotas. As duas primeiras são bastante semelhantes entre si. Seu organismo é uma célula pequena e sem órgãos internos, nem núcleo nem nada. Por isso, parecem primitivas.
Os eucariotas, o terceiro galho, seriam uma ramificação mais recente. Suas células, de fato, são maiores e têm diversos órgãos internos, como o núcleo - uma bolha de gordura onde os genes ficam guardados. Muitos eucariotas são unicelulares, como as algas, as amebas e os protozoários (um protozoário conhecido é o tripanossoma, causador do mal de Chagas). Mas há os eucariotas multicelulares. Você, que está com essa revista na mão, é um eucariota. A minhoca também é, como todos os animais e plantas.
Foi a partir dessa árvore de três galhos que se chegou a hipótese do ancestral mais tórrido. Por sua simplicidade, as bactérias e arqueobactérias parecem ser as mais primitivas. Além do quê, são amigas do calor. Outro ponto a favor: os fósseis mais antigos já encontrados, com 3,5 bilhões de anos, têm os traços gerais das bactérias, enquanto os primeiros rastros dos eucariotas aparecem há apenas 2 bilhões de anos. Mas a tese pegou fogo mesmo quando passaram a surgir, recentemente, novas descobertas de termófilos e hipertermófilos (bactérias das altas temperaturas, de até 110 graus) habitando as profundezas da terra, muitas vezes embaixo do fundo dos oceanos. 
Todos os meses, praticamente, surge um novo representante da escaldante fauna. Em 1994, o microbiologista ambiental Daniel Boone, do Oregon Graduate Institute, de Portland, Estados Unidos, encontrou montanhas de bactérias enterradas sob mais de 3 quilômetros de rochas. Uma delas, apropriadamente batizada Bacillus infernus, é inquilina das fendas de pedra a 60°C. Falando à SUPER, por fax, Boone resumiu o argumento da maioria dos cientistas com relação a esses micróbios. "Durante a formação da Terra, a temperatura era muito alta, e assim que ela caiu um pouco, as primeiras células capazes de sobreviver teriam sido as bactérias termófilas."
O francês Paul Forterre, no entanto, acha prematuro tirar conclusões por aí. Ele reconhece que as bactérias têm uma anatomia simples. Mas, se forem observadas mais de perto, na escala das moléculas, elas não são realmente primitivas: "Elas têm mais ou menos as mesmas engrenagens bioquímicas dos eucariotas." Forterre trabalha com a idéia de um ser ancestral muito diferente com relação aos que existem hoje.
Além disso, segundo Forterre, não há provas de que os primeiros bichos já nasceram preparados para agüentar o calor. Essa capacidade pode ter sido adquirida com o tempo. Ele aposta que as primeiras células tinham uma tecnologia bioquímica realmente rudimentar, cujas engrenagens ainda não foram achadas em nenhum micróbio, nem num fóssil de micróbio. Ele prefere pensar que a linha mestra na evolução desse bicho, que não tinha familiaridade com labaredas, conduz ao galho dos eucariotas. Mas o precursor, em si mesmo, seria algo jamais visto, pondera o cientista. "Alguma coisa entre as bactérias e os eucariotas."
O planeta é dos micróbios. Eles estão na Terra há mais de 4 bilhões de anos; os humanos (Homo erectus) chegaram há 2 milhões de anos, se tanto. Uma idade duas mil vezes menor. Mesmo juntando todos os animais, dos menores vermes às baleias azuis, nenhum está aqui há mais de 500 milhões de anos, quase um décimo da idade dos micróbios. Numa árvore genealógica de todos os seres, o conjunto completo dos animais é um único ramo, e o conjunto das plantas ocupa mais um. São dois ramos num dos três galhos da árvore, o galho dos eucariotas. Todos os outros vinte ramos da árvore são propriedade dos micróbios.
"Já sabemos que há mais diferença entre duas linhagens de micróbios, mesmo filiados ao galho dos eucariotas, do que entre as plantas e os animais, que também são eucariotas", diz o francês Paul Forterre. Isso significa que há mais semelhanças entre um cidadão comum e uma samambaia do que entre um micróbio e outro. 
Forterre sustenta que a ramificação dos seres unicelulares, por volta de 4 bilhões de anos atrás, foi muito rápida. Uma explosão que transformou profundamente o hipotético precursor de todos eles, na visão do cientista. Ele sabe que está andando na contramão (veja o que afirmam seus antagonistas no quadro ao lado).
Uma contramão espinhosa. Em oposição a ele, pesa o fato de que Terra sofreu pesada blitz de meteoros gigantes, entre 4,2 e 3,8 bilhões de anos atrás. Essa descoberta, feita há pouco mais de cinco anos, animou os defensores de um ancestral termófilo, já que a temperatura global da Terra pode ter chegado a quase 100 °C. 
A posição de Forterre, apesar disso, não fica totalmente abalada. É só ver o que declarou à nos um respeitado estudioso do assunto, o geólogo James Kasting, da Universidade do Estado da Pensilvânia: "Com o impacto dos meteoros, a temperatura global pode ter subido a 85°C, mas meu palpite é de que ficou entre 25 e 40°C ". Assim, fica-se dentro da margem que contempla a hipótese do francês, para quem a vida não começou em temperaturas muito mais altas que 40°C.
Forterre também ganhou pontos em um livro lançado este ano, Origins of Life and Evolution of the Biosphere, do microbiologista Peter Gogarten, da Universidade de Connecticut, Estados Unidos. Em entrevista à nos, Gogarten afirmou: "A genealogia dos micróbios não indica que eles surgiram em ambientes com mais de 70°C." Forterre, em sua honrosa contramão, vai saber aproveitar mais esse argumento. Ele gostaria que surgisse uma associação entre microbiologistas, biólogos moleculares, químicos e exobiologistas (que procuram vida no espaço). "Acho que vamos ter descobertas surpreendentes sobre o ancestral universal e seus possíveis parentes em outros planetas." O debate vai ferver.


A célula única ...

Há 3 bilhões de anos, bactérias inumeráveis cobrem a paisagem como grossas mantas coloridas. A luz já conseguia passar através dos gases ejetados pelos vulcões. A atmosfera não tinha ainda oxigênio, que só iria aparecer, como uma secreção de certas bactérias, 1 bilhão de anos depois. O ar continha vapor de água, nitrogênio e gás carbônico.

... vira corpo mole ...

Ocupando sozinhos o planeta por quase 3 bilhões de anos, os micróbios de repente têm de abrir espaço para os organismos com mais de uma célula e de corpo mole. Um pouquinho mais tarde, há 500 milhões de anos, os animais de casca e outras partes duras explodem com os contornos mais estranhos. Era uma festa de modelos de corpos, uma fartura de formas como nunca mais se viu.

... e organismo acabado

Há 300 milhões de anos, os peixes já haviam se desenvolvido e os répteis conquistavam a terra firme. Os ossos chegavam ao planeta, dando sustentação interna aos organismos. As plantas, que haviam evoluído a partir das algas, completavam a paisagem. As primeiras plantas ainda não tinham flores, que são órgãos sexuais das espécies mais avançadas.

Depois dos répteis...

Com os dinossauros, o predomínio dos répteis chega ao auge. Os seres que começaram essa história, mil vezes menores que 1 milímetro, se tornaram imensas massas de carne, com 30 metros de altura. Eram exuberantes, mas foram efêmeros. O seu reinado não chega a durar 5% da idade da Terra (que é de 4,6 bilhões de anos). O dos micróbios havia durado 88%.

... e dos mamíferos...

Últimos 100 milhões de anos. Pouco antes, a natureza vinha fazendo experiências com animais parecidos com os répteis, mas de um novo tipo. Eram os antecessores dos mamíferos. No princípio, suas populações eram insignificantes, mas eles evoluem com rapidez a partir de 65 milhões de anos atrás, com o repentino desaparecimento dos dinossauros.

... vem a humanidade

De acordo com a microbiologista americana Lynn Margulis, a Terra, na verdade, nunca deixou de ser dos micróbios. Ela sustenta que todos os animais complicados não passam de associações de micróbios. Até o homem, com todo o respeito. O nosso corpo, tal como existe no Homo sapiens há 200 000 anos, seria a forma suprema da aventura existencial desses seres microscópicos.  

O que dizem os maiores conhecedores do assunto 

"O mais razoável 
é que o ancestral 
de todas as formas 
vivas tenha sido 
um organismo 
preparado para 
enfrentar altas temperaturas"

Carl Woese, 
Universidade 
de Illinois

Um dos responsáveis pelo debate atual a respeito do mais antigo ancestral de todos os micróbios é o professor Carl Woese. Ele descobriu, na década de 70, o que hoje se considera uma classe inteiramente nova de microorganismos, as chamadas arqueobactérias. Comparáveis às bactérias tradicionais, elas são enigmáticas porque também têm traços que lembram os da terceira grande classe de micróbios, os eucariotas. Nem todos admitem essa divisão tripartite (bactérias, arqueobactérias e eucariotas), que substituiu a divisão em duas classe apenas (bactérias e eucariotas). Mas ela já é muito importante para ser ignorada. 
Estão entre as arqueobactérias alguns dos mais extremados hipertermófilos (micróbios muito amigos do calor). Eles não ligam para temperaturas de 110°C. Favorecem a idéia de que a vida começou mesmo pegando fogo.

"Toda a química 
que conhecemos sobre a origem 
da vida sugere 
que ela começou 
em baixa temperatura".

Stanley Miller, 
Universidade 
da Califórnia

Miller é o que se chama uma lenda. Em 1953, na Universidade de Chicago, ele aplicou descargas elétricas numa mistura de metano, vapor de água, hidrogênio e amoníaco, e transformou essas moléculas triviais em aminoácidos, substâncias básicas para o metabolismo das células. 
Mostrou que, sob as condições certas, a matéria inanimada podia gerar as peças fundamentais para o funcionamento dos seres. Essa revolução aconteceu na Terra, há bilhões de anos, e repeti-la no laboratório tem sido um sonho dourado do homem. Miller ainda não chegou lá, mas vem acumulando informações preciosas. O dado mais atual, que ele divulgou no ano passado, contradiz os argumentos de que vida precisaria de centenas de milhões de anos para brotar: "Nossos cálculos mostram que 10 milhões de anos são mais do que suficientes."


"Eu acredito que 
as moléculas das primeiras células 
não suportariam 
um calor extremo, 
de mais de 100°C. Penso que elas surgiram, há mais 
de 4 bilhões de anos, num ambiente de até 70°C. Só depois é que se adaptaram a 120°C."

Peter Gogarten,
Universidade de Connecticut

No final do ano passado, no livro Origins of life and evolution of biosphere, saiu uma das mais completas análises das moléculas básicas de todas as classes de micróbios. "Os autores articularam muito bem as mais recentes novidades sobre o assunto", recomendou o americano James Kasting, professor de Geociências da Universidade do Estado da Pennsilvânia. Um dos autores, o biólogo Peter Gogarten, falou à SUPER que, logo depois de formada, a Terra era quente, às vezes mais, às vezes menos, em períodos alternados. A vida teria surgido numa das fases em que o castigo era menor.

"Há diversas formas de justificar a 
hipótese de que 
os primeiros organismos eram células familiares 
com ambientes quentes. Nessas condições, por exemplo, as reações químicas básicas 
das células ocorreriam mais facilmente"

Daniel Boone, 
Oregon Graduate Institute

O microbiologista ambiental Daniel Boone participou, no ano passado, da descoberta de um novo nicho ecológico dos micróbios: o subsolo profundo do planeta. Espécies desconhecidas estão sendo encontradas em grande número nesse locais, em todos os continentes. Algumas estão isolados nas profundezas desde o tempo dos dinossauros, há 60 milhões de anos. E os seus ancestrais, a julgar pela posição defendida por muitos cientistas, podem ter ocupado esses nichos desde os primeiros momentos de existência do planeta. 


Uma árvore para cada hipótese

Hipótese 1
A visão predominante entre os pesquisadores é que os primeiros organismos surgiram mesmo na Terra ardente. Eram antepassados das bactérias (microorganismos que não têm núcleo). Por isso, as bactérias estariam na linhagem principal da árvore genealógica. 

Hipótese 2
Na hipótese alternativa nem tudo era castigo, o tempo todo. As células originais acharam um ambiente menos quente para nascer e estavam na linhagem dos eucariotas (microorganismos com núcleo). Nesse ramo, estão os animais, inclusive o homem. 


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