quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Academia Brasileira de História em Quadrinhos é inaugurada no Rio com 60 mil exemplares


Academia Brasileira de História em Quadrinhos é inaugurada no Rio com 60 mil exemplares

A entidade em Botafogo empossou quadrinistas e cartunistas. Arquivo tem edições raras. Entre os exemplares históricos, estão as revistas de “Jerônimo, o Herói do Sertão”, desenhadas por Edmundo Rodrigues, idealizador da Academia morto em 2012


A cena parece de cinema — ou de uma tirinha de HQ das mais dramáticas. No leito de morte, o gênio dos gibis Edmundo Rodrigues, então com 79 anos, chama aquela que foi sua produtora por mais de cinco décadas, Ágata Desmond, e sussurra a ela um pedido, seco, firme: “não deixe minha obra morrer”. Autor de revistas em quadrinhos desde a década de 50, sendo chamado de “mestre” até pelos contemporâneos, o paraense chegou ao fim da vida, em setembro de 2012, com medo de não deixar sua marca para a posteridade e frustrado por não conseguir ajudar os amigos de profissão que mal conseguiam sobreviver depois da época de ouro das HQs, entre os anos 60 e 80. No último dia 30 de janeiro, no entanto, Ágata deu um grande passo para cumprir a velha promessa: ela lançou a Academia Brasileira de História em Quadrinhos (Abrahq), empossando 20 artistas que passarão a ocupar cadeiras em homenagem a desenhistas já falecidos, entre eles o próprio Rodrigues.



— Quando eu prometi ao mestre que faria de tudo para manter viva a história dos quadrinhos, na verdade não sabia no que estava me metendo. É preciso muito esforço para tocar um projeto como o da Academia, porque não temos apoio financeiro. Mas, agora, o que eu mais quero é vê-la crescer e dar frutos — afirma Ágata.

O acervo da Academia conta com 60 mil gibis, hoje armazenados no virtual Museu do Gibi, em Niterói. Inclui também um sem-número de doações dos hoje “imortais”, além dos trabalhos de Edmundo Rodrigues e do também guru dos quadrinhos Flavio Colin, já que Ágata é curadora da obra de ambos. Grande parte desses desenhos ainda tem seus originais preservados, em folhas no mínimo duas vezes maiores do que o A4. A coleção é repleta de raridades: “O Tico-tico”, tira nacional da década de 1940; “João Charuto”, do mesmo período; “Irina, a bruxa”, um clássico do gênero de Terror em quadrinhos, criado por Rodrigues duas décadas depois; “Jerônimo, o Herói do Serão”, de mesma autoria; até os primeiros exemplares de “Popeye” a desembarcarem no Brasil, por volta de 1975.

Falta, entretanto, uma sede para a recém-criada instituição. Para não adiar ainda mais o sonho da fundação da Abrahq, Ágata, agora presidente da entidade, resolveu começar o projeto ainda que fosse numa sede provisória, onde os artistas pudessem se encontrar mensalmente. A casa temporária é o espaço de coworking Colmeia Carioca, em Botafogo, alugado pelo grupo para cada dia de reunião.

— Nosso principal objetivo é conseguir uma sede definitiva, onde possamos armazenar a coleção e deixar os principais exemplares expostos. Queremos ter um espaço físico dedicado aos quadrinhos, e não ter que levá-los de um lado para o outro — diz ela, que vive em trânsito com os trabalhos de Copacabana, onde mora, até Botafogo, e vice-versa. — A maior preocupação é o desgaste das obras mais antigas.

No início do mês, ela foi convidada para uma reunião com funcionários da Secretaria estadual de Cultura, mas o saldo do encontro não foi dos mais otimistas: não haveria verba suficiente para o governo do estado montar uma sede para a Abrahq, pelo menos por enquanto. Ágata retrucou que uma sala dentro de uma escola estadual já seria de bom tamanho, mas não teve ainda proposta concreta.

Da esquerda para direita, Francisco Ferreth, Lincoln Nery, Walmir Amaral e Ágata Desmond, a presidente da Abrahq. 


De qualquer forma, uma das metas da instituição é levar exposições, sempre de graça, a escolas e centros culturais. Para isso, o Sindicato dos Professores, por exemplo, já deu seu apoio. Outro intento, não menos importante, é viabilizar meios de os artistas se manterem na carreira, e de novos profissionais entrarem no mercado. Para tanto, os integrantes querem trocar experiências, fazer uma rede de contatos e promover cursos de capacitação.

Com o avanço da computação e o fim das grandes editoras cariocas que investiam em HQs autorais, como a GEP, a Bloch e a Rio Gráfica (que depois viria a se tornar Editora Globo), o mercado se encolheu. Foram extintas, por exemplo, as profissões de capista, colorista e letrista, todas envolvidas na produção de tirinhas. Os artistas que chegaram depois da década de 90 precisaram, portanto, brigar de foice, lápis e pincel em riste por um espacinho no mercado.


— Hoje, a quantidade de quadrinhos à venda é mínima, e quase não há espaço para produtos nacionais — lamenta o quadrinista da nova geração Lincoln Nery, que, aos 31, trabalha como publicitário. — A melhor maneira para conseguir viver disso é apostar em produtos a partir dos desenhos, como bonecos e games.

Nery criou seu primeiro personagem aos 6 anos, início de “carreira” precoce e parecido com o da maioria dos artistas do ramo. O herói Jou Ventania é, até hoje, sua principal criação, tendo sido divulgado pela primeira vez em uma fanzine de 1997. O rapaz é um dos mais jovens membros da Academia.

Ídolo do moço e, grosso modo, de todos os fiéis leitores das histórias de Fantasma, Mandrake e Cavaleiro Negro, o desenhista Walmir Amaral, hoje aos 76, aposentou-se em 1990. Hoje, faz desenhos para camisetas de blocos de carnaval e livros de cursos de idiomas. Na década de 60, no entanto, era reconhecido como um dos grandes dos quadrinhos nacionais, alcunha que, mesmo já fora do mercado, ele ostenta até hoje. 

Chegou a ser eleito pela Associação dos Quadrinistas e Cartunistas, de São Paulo, como um dos cinco profissionais mais importantes do Brasil.

Hoje conselheiro da Academia, Amaral recebeu da entidade uma menção honrosa pelo conjunto da obra — ao lado do paulista Júlio Shimamoto, de 75 anos. Eles são os únicos membros hors concours, que não ocupam cadeiras.

Amaral tornou-se um dos poucos autores de HQs da América do Sul a ter permissão para desenhar e criar argumentos para as histórias do Fantasma e do Mandrake, dois personagens antológicos de Lee Falk. Pouco mais tarde, criou o Vingador Mascarado, sucesso de vendas da Rio Gráfica Editora. Os anos dourados dos quadrinhos o permitiram, aos 17 anos, comprar uma lambreta com seu primeiro salário de 10 mil — a moeda ele já não se lembra mais.



O veterano Walmir Amaral foi um dos poucos quadrinistas da América do Sul a ter autorização para desenhar e criar argumentos para as histórias do Fantasma - Felipe Hanower

— Eu comecei a trabalhar em 1957, mas já desenhava desde criança. Na escola, eu trocava os desenhos por merenda — relembra Amaral, aos risos. — Quando cheguei à Rio Gráfica, bastou eu desenhar de forma improvisada numa folha qualquer e me disseram: “está contratado!”. Naquela época, o mercado estava de portas abertas, a produção era toda manual.


Além de desenhistas de quadrinhos, participam da Abrahq cartunistas renomados. Entre eles, o potiguar Francisco Ferreth, que trabalhou por muitos anos na equipe de Ziraldo, produzindo histórias de personagens icônicos como o Menino Maluquinho. 

No início da década de 90, ele criou o Dimenor, inspirado em meninos de rua.— Eu ficava sentado no Amarelinho, da Cinelândia, vendo os garotos sem casa que circulavam por lá e sempre me suscitavam ideias para tirinhas — recorda ele.

Num mercado tradicionalmente dominado pelo sexo masculino, Ágata Desmond — que, além de produzir HQs, é radialista e diretora de teatro, porém nunca foi hábil com lápis e pincéis — é a única mulher integrante da Academia. Os homens que a cercam são, em ordem alfabética, Amorim, André Aurnheimer, Bira Dantas, Carlos Alberto de Carvalho, Carlos Eugênio Baptista, Fabio Moraes, Fernando Jorge Silva, Fernando Resky, Flavio Colin Filho, Francisco Ferreth, Helio Guerra, Johnny Fonseca, Lipe Diaz, Lincoln Nery, Marcus Moraes, Ranieri Andrade, Rod Gonzalez, Sérgio Pereira Lima e Wladimir Weltman.

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