quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O Ateneu - Parte 3 de 4 - Raul Pompéia


O Ateneu - Parte 3 de 4 - Raul Pompéia


    A perfectibilidade evolutiva dos organismos em função, manifestando. se prodigiosamente 
complexa, no tipo humano, corresponde à revelação, na ordem animal, do misterioso fenômeno 
personalidade, capaz de fazer a critica do instinto, como o instinto faz a critica da sensação.


    A informação de reportagem de cada sentido não desperta, portanto, no homem a atividade 
cerebral dos impulsos de preferência, de repugnância, simplesmente, como nos outros animais; mas 
amplia, pela psicologia inteira dos fenômenos espirituais, a variedade infinita das comparações, 
permutadas de mil modos na unidade do espírito como as peças de um jogo maravilhoso sobre o 
mesmo pano.
    Duas são as representações elementares do agradável realizado: nutrição e amor.
    Os animais inferiores, não favorecidos por um razoável coeficiente de progresso, produzem 
secularmente a condição da inferioridade; olham, tocam, farejam, ouvem, não provam com 
demasiado escrúpulo e devoram grosseiramente para depois amar, como sempre fizeram.
    O homem, por desejo de nutrição e de amor, produziu a evolução histórica da humanidade.
    A nutrição reclamou a caçada fácil - inventaram-se as armas; o amor pediu um abrigo, 
ergueram-se as cabanas. A digestão tranqüila e a perfilhação sem sobressaltos precisaram de proteção 


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contra os elementos, contra os monstros, contra os malfeitores, - os homens tacitamente se 
contrataram para o seguro mútuo, pela força maior da união: nasceu a sociedade, nasceu a linguagem, 
nasceu a primeira paz e a primeira contemplação. E os pastores viram pela vez primeira que havia no 
céu a estrela Vésper, expandida e pálida como o suspiro.
    Mas era preciso que fossem leitos de amor as crinas de ouro e fogo dos leões, e que houvesse 
marfim, metais luzentes, pedraria, sobre a alvura láctea da carne amada, que não bastavam beijos para 
vestir; era preciso deliciar a gustação, como requinte das estranhezas. E os homens levaram a 
conquista aos reis da floresta, ao ventre do solo; foram colher aos ares os íncolas mais raros, 
emplumados de luz como criações canoras do sol; e foram buscar às ondas os mais esquivos viajores 
do abismo, singrando céleres, fantásticos, na sombra azul, em cauda um reflexo vago de escamas, - 
para morder-lhes a vida.
    Urgiu ainda a fome, urgiu mais o amor e veio a guerra, a violência, a invasão. Curvaram-se os 
cativos ao látego vencedor e foram abatidas as escravas sob a garra da lascívia sanguinária, faminta 
de membros avulsos, olhos sem alma, lábios sem palavra, formas sem vontade, pretexto miserável de 
espasmos. Formaram-se os ódios de raça, as opressões de classe, as corrupções vingadoras e 
demolidoras.
    Mas a cisma evoluiu também, aquela cisma poética da pastoral primeva que buscara os astros no 
céu para adereço dos idílios. O fundo tranqüilo e obscuro das almas, aonde não chega o tumultuar de 
vagas da superfície inflamou-se de fosforescências; geraram-se as auréolas dos deuses, coalharam-se 
os discos das glórias olímpicas: as religiões nasceram.
    Mas era preciso que fosse palpável o espectro da divindade; as rochas descascaram-se em 
estátuas, os metais se fizeram carne e houve cultos, houve leis, vieram profetas e pontífices 
ambiciosos. E esta evolução da cisma que fora amante, feita instrumento da tirania, deu lagar às 
práticas do terror, aos apostolados do morticínio.
    Mas uma lira ficara da geração primeira de cismadores, e as cordas cantavam ainda e os sons 
falaram no ar as epopéias do Oriente e da Grécia. Roubou-se aos sacerdotes tiranos o monopólio dos 
deuses para jungi-los à atrelagem do metro; que levassem através dos séculos, o carro triunfal da 
estrofe, onda sonora de vibrações imortais.
    E os esculpidores dos ídolos legaram o segredo da fábrica revelando que vinham de um molde 
de barro aquelas arrogâncias de bronze, que se fazem deuses como as ânforas. E os artistas modernos 
recomeçaram, chamando a religião ao atelier, como um modelo de hora paga; e gravaram em tinta, 
pelos muros, as visões místicas da crença.
    A nitidez artística das formas fizera crer aos homens que morava realmente um espírito sagrado 
na porosidade do mármore, e que realmente havia em proporções infinitas uma tela de olimpos e 
paraísos, onde as cores do antropoformismo artístico viviam soberanas, olhando o mundo lá embaixo, 
vazando a urna providencial das penas e das alegrias.
    Decaídas as fantasias sentimentais, reformou-se o aspecto do mundo. Os deuses foram banidos 
como efeitos importunos do sonho. Depois da ordem em nome do Alto proclamou-se a ordem 
positivamente em nome do Ventre. A fatalidade nutrição foi erigida em principio: chamou-se 
indústria, chamou-se economia política, chamou-se militarismo. Morte aos fracos! Alcançando a 
bandeira negra do darwinismo espartano, a civilização marcha para o futuro, impávida, temerária, 
calcando aos pés o preconceito artístico da religião e da moralidade.
    Sobrevive, porém, o poema consolador e supremo, a eterna lira...
    Reinou primeiro o mármore e a forma; reinaram as cores e o contorno, reinam agora os sons, - 
a música e a palavra. Humanizou-se o ideal. O hino dos poetas do mármore, do colorido, que 
remontava ao firmamento, fala agora aos homens, advogado enérgico do sentimento.
    Sonho, sentimento artístico ou contemplação, é o prazer atento da harmonia, da simetria, do 
ritmo, do acordo das impressões, com a vibração da sensibilidade nervosa. É a sensação 
transformada.
    A história do desenvolvimento humano nada mais é do que uma disciplina longa de sensações. 


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A obra de arte é a manifestação do sentimento.
    Dividindo-se as sensações em cinco espécies de sentidos, devem os sentimentos corresponder a 
cinco espécies e igualmente as obras de arte.
    Da sensação acústica vem a estesia acústica: sentimento nos sons, nas palavras - eloqüência e 
música; da sensação da vista, a estesia visual, o sentimento na forma, no traço e no colorido, - 
escultura, arquitetura, pintura; da sensação palatal e olfativa nasce o sentimento do gosto e do 
perfume, - artes menos consideradas pela relativa inferioridade dos seus efeitos. A sensação do 
tato, secundada por todas as outras, dá lugar ao sentimento complexo do amor, arte das artes, arte 
matriz, razão de ser de todas as espécies de estesia.
    O primeiro momento contemplativo de um amoroso foi o advento da estética, no gozo visual 
das linhas da formosura, na delicie auditiva de uma expressão inarticulada, que fosse emitida com 
expressão, na comoção de um contato, na aspiração inebriante do aroma indefinido da carne. A obra 
d'arte do amor é a prole; o instrumento é o desejo.
    Depois da arte primitiva e fundamental do tato, a arte do ouvido. A obra de arte é a frase 
sentida, hábil para produzir emoção; o instrumento é a linguagem.
    Esta arte devia mais tarde ramificar-se em eloqüência propriamente e poesia popular, graças à 
aproximação híbrida de terceira arte, do ouvido, a música.
    Com o progresso humano, o sentimento artístico da simetria e da harmonia destacou-se 
analiticamente da arte de amar. E, depois da arte primordial, descendente imediata do instinto 
erótico, da qual se desprendera, sob a forma selvagem das interjeições primitivas, a arte da 
eloqüência; e em seguida, sob a forma de expressões homométricas, a poesia popular e a primeira 
música; nasceram as artes intencionais, de imitação, da escultura, da arquitetura, do desenho. Depois 
da poesia popular, amorosa ou heróica, veio a rapsódia.
    Ainda mais, segundo um traçado naturalíssimo de filiação, o sentimento da simetria, trasladado 
para a esfera das relações sociais, serviu de plano à organização das religiões, filhas do pavor, e das 
moralidades, invenção das maiorias de fracos. Com o predomínio insensato das religiões, o amor 
deixou de ser um fenômeno, passou a ser um ridículo ou uma coisa obscena.
    Por um raciocínio de retrocesso, se ponderarmos que a moralidade é a organização simétrica da 
fraqueza comum, que a religião é a organização simétrica do terror, que a simetria, isto é, harmonia e 
proporção, é a norma artística das imitações plásticas da ingênua admiração da criatura primitiva, e 
que esta admiração prazenteira, testemunhada por uma tentativa de desenho ou de estátua, por um 
canto popular ou por uma interjeição veemente, nada mais é do que um modo acentuado de um 
esforço de atenção, e que a primeira atenção dos homens do principio, - a lenda de Adão que o diga, 
- devia ser do indivíduo de um sexo para o indivíduo de outro sexo, teremos averiguado o aforismo 
paradoxal de que a arte subjetivamente, o sentimento artístico nas suas mais elevadas, mais etéreas 
manifestações, é simplesmente - a evolução secular do instinto da espécie.
    Esta é a sua grandeza, e por isso vai zombando, através das idades, das vicissitudes 
tempestuosas do combate pela nutrição, dos próprios exasperos homicidas do amor.
    A arte é primeiro espontânea, depois intencional.
    Manifesta-se primeiro grosseiramente, por erupções de sentimento, e faz o amor concreto, a 
interjeição, a eloqüência rudimentar, a poesia primitiva, o primitivo canto. Manifesta-se mais tarde, 
progressivamente, por efeitos de cálculo e meditação e dá o epos, a eloqüência culta, a música 
desenvolvida, o desenho, a escultura, a arquitetura, a pintura, os sistemas religiosos, os sistemas 
morais, as ambições de síntese, as metafísicas, até as formas literárias modernas, o romance, feição 
atual do poema no mundo.
    As manifestações espontâneas são coevas de todas as sociedades; a poesia popular, por 
exemplo, não desaparece, nem a eloqüência, ainda menos o amor. As manifestações intencionais, 
ampliações, aperfeiçoamentos do modo primitivo de expressão sentimental, sujeitam-se aos 
movimentos e vacilações de tudo que progride.
    O coração é o pêndulo universal dos ritmos. O movimento isócrono do músculo é como o 


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aferidor natural das vibrações harmônicas, nervosas, luminosas, sonoras. Graduam-se pela mesma 
escala os sentimentos e as impressões do mundo. Há estados d'alma que correspondem à cor azul, ou 
às notas graves da música; há sons brilhantes como a luz vermelha, que se harmonizam no sentimento 
com a mais vivida animação.
    A representação dos sentimentos efetua-se de acordo com estas repercussões.
    O estudo da linguagem demonstra.
    A vogal, símbolo gráfico da interjeição primitiva, nascida espontaneamente e instintivamente do 
sentimento, sujeita-se à variedade cromática do timbre como os sons dos instrumentos de música. 
Gradua-se, em escala ascendente u, o, a, e, i, possuindo uma variedade infinita de sons 
intermediários, que o sentimento da eloqüência sugere aos lábios, que se não registram, mas que 
vivem vida real nas palavras e fazem viver a expressão, sensivelmente enérgica, emancipada do 
preceito pedagógico, de improviso, quase inventada pelo momento.
    Há ainda na linguagem o ritmo de cada expressão. Quando o sentimento fala, a linguagem não 
se fragmenta por vocábulos, como nos dicionários. É a emissão de um som prolongado, a crepitar de 
consoantes, alteando-se ou baixando, conforme o timbre vogal.
    O que move o ouvinte é uma impressão de conjunto. O sentimento de uma frase penetra-nos, 
mesmo enunciado em desconhecido idioma.
    O timbre da vogal, o ritmo da frase dão alma à elocução. O timbre é o colorido, o ritmo é a linha 
e o contorno. A lei da eloqüência domina na música, colorido e linha, seriação de notas e andamentos; 
domina na escultura, na arquitetura, na pintura: ainda a linha e o colorido.
    Na sua qualidade de representação primária do sentimento, depois do fato do amor, a 
eloqüência é a mais elevada das artes. Daí a supremacia das artes literárias, - eloqüência escrita.
    A eloqüência foi a principio livre, fiel ao ritmo do sentimento; influenciada pela música 
monótona dos mais antigos tempos, cadenciou-se em metro regular e monótono como a música. 
Aproveitada como recurso mnemônico, libertou-se da música, guardando, porém, a forma do metro 
igual e da quantidade equivalente, que havia de ser um dia a metrificação da sílaba, que havia de dar 
em resultado a monstruosidade da rima, o calembur feito milagre de perfeição.
    A música seguiu à parte a sua evolução.
    Na arte da eloqüência da atualidade acentua-se uma reação poderosa contra o metro clássico; a 
critica espera que dentro de alguns anos o metro convencional e postiço terá desaparecido das 
oficinas da literatura. O sentimento encarna-se na eloqüência, livre como a nudez dos gladiadores e 
poderoso. O estilo derribou o verso. As estrofes medem-se pelos fôlegos do espírito, não com o 
polegar da gramática.
    Hoje, que não há deuses nem estátuas, que não há templos nem arquitetura, que não há dies iroe 
nem Miguel Ângelo; hoje que a mnemônica é inútil, o estilo triunfa, e triunfa pela forma primitiva, 
pela sinceridade veemente, como nos bons tempos em que o coração para bem amar e o dizer não 
precisava crucificar a ternura as quatro dificuldades de um soneto.
    Qual a missão da arte? Originaria da propensão erótica fora do amor, a arte é inútil, - inútil 
como o esplendor corado das pétalas sobre a fecundidade do ovário. Qual a missão das pétalas 
coradas? De que nos serve a primavera ser verde? As aves cantam. Que se aproveita do cantar das 
aves? A arte é uma consequência e não um preparativo. Nasce do entusiasmo da vida, do vigor do 
sentimento, e o atesta. Agrada sempre, porque o entusiasmo é contagioso como o incêndio. A alma 
do poeta invade-nos. A poesia é a interpretação de sentimentos nossos. Não tem por fim agradar.
    E, depois, reclamar títulos de utilidade às divagações graciosas de uma energia da alma, que 
significa em primeira manifestação a própria perpetuidade da espécie?!
    Além de inútil, a arte é imoral. A moral é o sistema artístico da harmonia transplantado para as 
relações de coletividade. Arte sui generis. Se é possível eficazmente o regime social das simetrias da 
justiça e da fraternidade, o futuro há de provar. Em todo caso é arte diferente e as artes não se 
combinam senão em produtos falsos, de convenção.
    Poema intencionalmente moral é o mesmo que estátua polícroma ou pintura em relevo. Apenas 


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uma coisa possível, nada mais; há também quem faça flores, com asas de barata e pernas.
    A verdadeira arte, a arte natural, não conhece moralidade. Existe para o indivíduo sem atender 
à existência de outro indivíduo. Pode ser obscena na opinião da moralidade: Leda; pode ser cruel: 
Roma em chamas, que espetáculo!
    Basta que seja artística.
    Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade 
humana - acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam, acima da ciência 
que se corrige; embriaga como a orgia e como o êxtase.
    E desdenha dos séculos efêmeros.
    À vista da tranqüilidade do auditório, subentende-se que não estavam presentes os dois heróis 
da primeira sessão solene: o Dr. Zé Lobo não viera, para não encontrar o Senador; o Senador Rubim 
não viera, para não encontrar o Dr. Zé Loto: impulsos equivalentes em sentido contrário anulam-se.
    Havia na sala diversos ouvintes que se distraiam de perseguir com atenção a galopada de 
hipógrifo, em que se elevava a eloqüência do orador.
    Bento Alves, um; outro o Malheiro, moreno, nervoso, carrancudo, o primeiro ginasta; outro, 
Barbalho.
    A preocupação de Bento Alves era uma injúria. Entre ele e Malheiro havia rixa de velha de 
emulação. Malheiro não lhe perdoava a culpa de ser bravo. Os próprios prodígios da força e 
agilidade, aplaudidos e proclamados pelo Ateneu, não davam para saciar a vaidade. De que valia ser 
forte, se era impossível a aplicação do seu esforço para afrouxar uma fibra à musculatura do Bento? 
Ah! não ser possível por sugestão desfiar uma a uma aquelas meadas de arame, reduzir a infantilidade 
débil aquela corpulência odiosa! Por que não iriam os desejos da inveja, como vampiros, sorver o 
sangue àquela força, a vida, gota a gota, àquele vigor de ferro?
    Bento Alves não dava mostras de perceber a rivalidade. Malheiro evitava-o. Era impossível 
conservar-se um momento perto do colega, que lhe não dessem ímpetos de assaltá-lo.
    A façanha da prisão efetuada pelo rival definitivamente retirava-lhe a glória de valoroso único. 
Malheiro entrou em melancolia trancada. O rosto moreno amorenou-se mais; a animação de um brilho 
não lhe chegava à janela do olhar; o sorriso nos lábios não abria a porta. Dir-se-ia um frontispício de 
luto.
    Ficou a ruminar o projeto de um encontro.
    O meu bom amigo, exagerado em mostrar-se melhor, sempre receoso de importunar-me com 
uma manifestação mais viva, inventava cada dia nova surpresa e agrado. Chegara ao excesso das 
flores. A principio, pétalas de magnólia seca com uma data e uma assinatura, que eu encontrava entre 
folhas de compêndio. As pétalas começaram a aparecer mais frescas e mais vezes; vieram as flores 
completas. Um dia, abrindo pela manhã a estante numerada do salão do estudo, achei a imprudência 
de um ramalhete. Santa Rosália da minha parte nunca tivera um assim. Que devia fazer uma 
namorada? Acariciei as flores, muito agradecido, e escondi-as antes que vissem.
    Mas o Barbalho espiava, ultimamente constituído fiscal oculto dos meus passos.
    As circunstâncias o tinham aproximado do Malheiro, e o açafroado caolho pretendia manejar a 
rivalidade dos dois maiores: um conflito entre Malheiro e Bento podia ser a vergonha para mim.
    O Malheiro, com o vozeirão grave de contrabaixo, começou a infernizar-me por epigramas. 
Queria incomodar o Alves mortificando-me, julgando que me queixasse. Eu devorava as afrontas do 
marmanjo sem descobrir o meio de tirar correta desforra. Barbalho lembrou-se de tomar as dores. 
Depois de incitar o Malheiro contra mim, incitou o Bento contra o Malheiro. Procurou-o 
misteriosamente e informou: "o Malheiro não passa pelo Sérgio que não pergunte quando é o 
casamento... é preciso casar... Ainda hoje pediu convite para as bodas. O Sérgio esta desesperado".
    O furor do Alves não se descreve, furor poderoso dos calados. Uma onda de apoplexia 
ruborizou-lhe as faces. Por único movimento de indignação contraiu os dedos, como estrangulando. 
Procurou o Malheiro e com a voz talvez alterada, mas sem ódio, fez intimação: "amanhã é a sessão de 
encerramento; em meio da festa salmos ambos; preciso falar-lhe das bodas".


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    Malheiro percebeu: era o sonhado encontro!
    Apenas desceu da tribuna o presidente efetivo do Grêmio, os adversários deixaram as cadeiras. 
Barbalho saiu pouco depois. Notei o movimento e adivinhei mais ou menos.
    Quando saímos do pavilhão, finda a solenidade, um criado entregou-me um envelope, uma 
carta do Alves, a lápis. "Estou preso; antes que te digam que por alguma indignidade, previno: por ter 
dado uma lição ao Malheiro."
    Minutos depois, Franco, muito satisfeito, contava a todos: "tinham lutado no jardim o Malheiro 
e o Alves; que briga dos dois brutos!" Alves saíra ferido com um golpe no braço, acreditam que de 
navalha; Malheiro estava no dormitório. Avisados pelo Alves, os criados tinham ido buscá-lo sem 
sentidos, ao fundo de um bosquete no parque. "Sem sentidos!" garantia o Franco; "que pândega! que 
sopapos! ora o Malheiro malhado!"
    Soube-se que Barbalho espreitara o combate através dos arbustos. Antes de o ver acabado, 
correra ativo, e concentrando a vesgueira numa só atenção de intrigante, preparara as coisas de modo 
que, ao voltar do jardim, Bento Alves foi surpreendido por uma ordem de prisão do diretor.
    Não denunciar nunca é preceito sagrado de lealdade no colégio. Os contendores recusaram-se a 
explicações. Bento Alves negou o braço a exame e a curativo; Malheiro, em panos de sal, fingindo-se 
muito prostrado, oferecia o mais impenetrável silêncio às indagações de Aristarco e protestava 
esborrachar as ventas a quem caísse na asneira de insinuar o bedelho no que não era da sua conta.
    "Ora o malhado!..." resmungavam os colegas; mas tratavam de esquecer o caso.
    Por minha parte, entreguei-me de coração ao desespero das damas romanceiras, montando 
guarda de suspiros à janela gradeada de um cárcere onde se deixava deter o gentil cavalheiro, para o 
fim único de propor assunto às trovas e aos trovadores medievos.

V I I


     O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se pode gerar da monotonia do trabalho 
como da ociosidade.
     Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a toalha esmeraldina do campo e o diorama 
acidentado das montanhas da Tijuca, ostentosas em curvatura torácica e frentes felpudas de colosso; espetáculos de 
exceção, por momentos, que não modificavam a secura branca dos dias, enquadrados em pacote nos limites do pátio 
central, quente, insuportável de luz, ao fundo daquelas altíssimas paredes do Ateneu, claras da caiação, do tédio, claras, 
cada vez mais claras.
     Quando se aproxima o tempo das férias. o aborrecimento é maior.
    Os rapazes, em grande parte dotados de tendências animadoras para a vida prática, forjicavam 
mil meios de combater o enfado da monotonia. A folgança fazia época como as modas, 
metamorfoseando-se depressa como uma série de ensaios.
    A peteca não divertia mais, palmeada com estrépito, subindo como foguete, caindo a rodopiar 
sobre o cocar de penas? Inventavam-se as bolas elásticas. Fartavam-se de borracha? Inventavam-se 
as pequenas esferas de vidro. Acabavam-se as esferas? Vinham os jogos de salto sobre um tecido de 
linhas a giz no soalho, ou riscadas a prego na areia, a amarela, e todas as suas variantes, primeira casa, 
segunda casa, terceira casa, descanso, inferno, céu, levando-se à ponta de pé o seixozinho chato em 
arriscada viagem de pulos. Era depois a vez dos jogos de corrida, entre os quais figurava 
notavelmente o saudoso e rijo chicote-queimado. Variavam os aspectos da recreação, o pátio central 
animava-se com a revoada das penas, o estalar elástico das bolas, passando como obuses, ferindo o 
alvo em pontaria amestrada, o formigamento multicor das esferas de vidro pela terra, com a gritaria 
de todas as vozes do prazer e do alvoroço.
    Depois havia os jogos de parada, em que circulavam como preço as penas, os selos postais, os 
cigarros, o próprio dinheiro. As especulações moviam-se como o bem conhecido ofídio das 
corretagens. Havia capitalistas e usurários, finórios e papalvos; idiotas que se encarregavam de levar 


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ao mercado, com a facilidade de que dispunham fora do colégio, fornecimentos inteiros, 
valiosíssimos, de Mallats e Guillots que os hábeis limpavam com a gentileza de figurões da bolsa, e 
selos inestimáveis que os colecionadores práticos desmereciam para tirar sem custo; fumantes ébrios 
de fumo alheio, adquirido facilmente no movimento da praça, repimpados à turca sobre os coxins da 
barata fartura.
    As transações eram proibidas pelo código do Ateneu. Razão demais para interessar. Da letra da 
lei, incubados sob a pressão do veto, surgiam outros jogos, mais expressamente característicos, dados 
que espirravam como pipocas, naipes em leque, que se abriam orgulhosos dos belos trunfos, 
entremostrando a pança do rei, o sorriso galhardo do valete, a simbólica orelha da sota, a paisagem 
ridente do ás; roletas miúdas de cavalinhos de chumbo; uma aluvião de fichas em cartão, pululantes 
como os dados e coradas como os padrões do carteiro.
    A principal moeda era o selo.
    Pelo sinete da posta dava-se tudo. Não havia prêmios de lição que valessem o mais vulgar 
daqueles cupons servidos. Sobre este preço, permutavam-se os direitos do pão, da manteiga ao 
almoço, da sobremesa, as delicias secretas da nicotina, o próprio decoro pessoal em si.
    A raiva dos colecionadores caprichando em exibir cada qual o álbum mais completo, mais rico, 
transmitia-se a outros, simples agentes de especulação; destes ainda a outros com a sedução do 
interesse. No colégio todo, só Rebelo talvez e o Ribas, o primeiro fundeado no porto da misantropia 
senil que o distanciava do mundo tempestuoso, o outro a fazer perpetuamente de anjo feio aos pés de 
Nossa Senhora, escapavam à mania geral do selo, melhor, à geral necessidade de premunir-se com 
valor corrente para as emergências.
    No comércio do selo é que fervia a agitação de empório, contratos de cobiça, de agiotagem, de 
esperteza, de fraude. Acumulavam-se valores, circulavam, frutificavam; conspiravam os sindicatos, 
arfava o fluxo, o refluxo das altas e das depreciações. Os inexpertos arruinavam-se, e havia 
banqueiros atilados, espapando banhas de prosperidade.
    Falava-se, com a reserva tartamuda dos caudatários do milhão, de fortunas imponderáveis... 
Certo felizardo que possuía aqueles imensos exemplares da primeira posta na Inglaterra, os dois 
raríssimos, ambos! o azul e o branco, de 1840, com a estampa nítida de Mulrady: a Grã-Bretanha, 
braços abertos sobre as colônias, sobre o mundo; à direita, a América, a propaganda civilizadora, a 
conquista da savana; à esquerda, o domínio das Índias, cules sob fardos, dorsos de elefantes 
subjugados; ao fundo, para o horizonte, navios, o trenó canadiano que foge à disparada das renas; no 
alto, como as vozes aladas da fama, os mensageiros da metrópole.
    Jóias deste preço imobilizavam-se nas coleções, inalienáveis por natureza como certos 
diamantes. Nem por isso era menos ardente a mercancia na massa febril da pequena circulação; da 
quantidade infinita dos outros selos, retangulares, octogonais, redondos, elipsoidais, alongados 
verticalmente, transversalmente, quadrados, lisos, denteados, antiqüíssimos ou recentes, ingleses, 
suecos, da Noruega, dinamarqueses, de cetro e espada, suntuosos Hannover, como retalhos de 
tapeçaria, cabeças de águia de Lubeck, torres de Hamburgo, águia branca da Prússia, águia em relevo 
da moderna Alemanha, austríacos, suíços de cruz branca, da França, imperiais e republicanos, de 
toda a Europa, de todos os continentes, com a estampa de um pombo, de navios, de um braço 
armado; gregos com a efígie de Mercúrio, o deus único que ficou de Homero, sobrevivo do Olimpo 
depois de Pã; selos da China com um dragão espalhando garras; do Cabo, triangulares; da república 
de Orange com uma laranjeira e três trompas; do Egito com a esfinge e as pirâmides; da Pérsia de 
Nassered-Din com um penacho; do Japão, bordados, rendilhados como panos de biombo e de 
ventarolas; da Austrália, com um cisne; do reino de Havaí, do Rei Kamehameha III; da Terra Nova 
com uma foca em campo da neve; dos Estados Unidos, de todos os presidentes; da república de São 
Salvador com uma auréola de estrelas sobre um vulcão; do Brasil, desde os enormes malfeitos de 
1843; do Peru com um casal de lhamas; todas as cores, todos os sinetes com que os estados tarifam as 
correspondências sentimentais ou mercantis, explorando indistintamente um desconto mínimo nas 
especulações gigantescas e o imposto de sangue sobre as saudades dos emigrados da fome.


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    A sala geral do estudo, comprida, com as quatro galerias de carteiras e a parede oposta de 
estantes e a tribuna do inspetor, era um microcosmo de atividade subterrânea. Estudo era pretexto e 
aparência, as encadernações capeavam mais a esperteza do que os próprios volumes.
    A certas horas reunia-se ali o colégio inteiro, desde os elementos de primeiras letras até os mais 
adiantados cursos. Agrupavam-se por ordem de habilitações; o abc diante da porta de entrada, à 
direita; à extrema esquerda, os filósofos, cogitadores do Barbe, os latinistas abalizados, os 
admiráveis estudantes do alemão e do grego. Baralhavam-se as três classes de idades; podia estar um 
marmanjo empacado à direita na carteira dos analfabetos, e podia estar um bebê prodígio a 
desmamar-se na filosofia da esquerda. O acaso da colocação podia sentar-me entre o Barbalho e o 
Sanches, como podia da afeição do Alves desterrar-me uma légua. Dependia tudo do adiantamento.
    Como compensação destas desvantagens havia os telégrafos e a correspondência de mão em 
mão. Os fios telegráficos eram da melhor linha de Alexandre 80, sutilíssimos e fortes, acomodados 
sob a tábua das carteiras, mantidas por alças de alfinete. Em férias desarmavam-se. Dois amigos 
interessados em comunicar-se estabeleciam o aparelho; a cada extremidade, um alfabeto em fita de 
papel e um ponteiro amarrado ao fio; legitimo Capanema. Tantas as linhas, que as carteiras vistas de 
baixo apresentavam a configuração agradável de citaras encordoadas, tantas, que às vezes 
emaranhava-se o serviço e desafinava a citara dos recadinhos em harpa de carcamano.
    Havia o gênio inventivo no Ateneu, esperanças de riqueza, por alguma descoberta milagrosa que 
o acaso deparasse à maneira do pomo de Newton. Ocorre-me um perspicaz que contava fazer fortuna 
com um privilégio para explorar ouro nos dentes chumbados dos cadáveres, uma mina! Foi assim a 
invenção malfadada do telégrafo-martelinho. Tantas pancadinhas, tal letra; tantas mais, tantas 
menos, tais outras. Os inventores achavam no sistema dos sinais escritos a desvantagem de não servir 
à noite. O elemento base desta reforma era uma confiança absoluta na surdez dos inspetores; 
aventuroso fundamento, como se provou.
    As primeiras pancadinhas passaram; apenas os estudantes mais próximos sorriam disfarçando. 
Mas o martelinho continuou a funcionar e ganhou coragem. No silêncio da sala, gotejavam as 
pancadas, miúdas, como o debicar de um pintainho no soalho.
    No alto da tribuna, o Silvino coçou a orelha e ficou atento; começava a implicar com aquilo. 
Silêncio... silêncio, e as pancadinhas de vez em quando.
    Foi o diabo. Inesperadamente precipitou-se do alto assento como um abutre, e com a finura do 
oficio foi cair justo sobre o melhor de um despacho. Seguiu-se a devastação. Examinando a carteira, 
descobriu a rede considerável dos outros telégrafos. Foi tudo raso. Brutal como a fúria, implacável 
como a guerra - oh Havas! - o Silvino não nos deixou um fio, um só fio ao novelo das 
correspondências! De carteira em carteira, por entre pragas, arrancou, arrebentou, destruiu tudo, o 
vândalo, como se não fosse o fio telegráfico listrando os céus a pauta larga dos hinos do progresso e 
a nossa imitação modesta uma homenagem ao século.
    A violência não fez mais que aumentar o tráfego dos bilhetinhos e suspender temporariamente a 
telegrafia.
    De mão em mão como as epístolas, corriam os periódicos manuscritos e os romances proibidos. 
Os periódicos levavam pelos bancos a troça mordaz, aos colegas, aos professores, aos bedéis: mesmo 
a pilhéria blasfema contra Aristarco, uma temeridade. Os romances, enredados de atribulações 
febricitantes, atraindo no descritivo, chocantes no desenlace, alguns temperados de grosseira 
sensualidade, animavam na imaginação panoramas ideados da vida exterior, quando não há mais 
compêndios, as lutas pelo dinheiro e pelo amor, o ingresso nos salões, o êxito da diplomacia entre 
duquesas, a festejada bravura dos duelos, o pundonor de espada à cinta; ou então o drama das 
paixões ásperas, tormentos de um peito malsinado e sublime sobre um cenário sujo de bodega, entre 
vômitos de mau vinho e palavradas de barregã sem preço.
    Com a proximidade das férias de ano, tudo desaparecia. O aborrecimento imperava.
    A impaciência da expectativa de livramento fazia intolerável a reclusão dos últimos dias.
    Organizavam-se os preparativos para a grande exposição de trabalhos da aula de desenho, as 


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aulas primárias estavam a ponto de entrar em exames, dos particulares semestrais, em que o diretor 
sondava o aproveitamento. Estes cuidados não podiam combater a inércia expectante dos ânimos.
    No salão do estudo poucos abriam livro. Os rapazes alargavam os cotovelos sobre a carteira, 
fincavam o queixo nas costas da mão e abstraíam-se com o olhar imóvel, idiotismo de espera, como se 
tentassem perceber o curso das horas no espaço. Por trás da casa, no quintal do diretor, ouvia-se 
cantando Ângela, cantilenas espanholas, sinuosas de moleza; mais longe, muito mais, em zumbido 
indistinto, como um horizonte sonoro, as cigarras trilavam, agitando o ar quente com uma vibração de 
fervura.
    Nas horas longuíssimas do recreio, os rapazes passeavam calados, destruindo a comunhão usual 
dos brincos, como se temessem estragar mais alegria naquele cativeiro, certo de melhor emprego 
breve. Pelas paredes a carvão, pelas tábuas negras a traços brancos, arranhada na caliça, escrita a lápis 
ou a tinta, por todos os cantos via-se esta proclamação: Viva às férias! determinando a ansiedade 
geral, como um pedido, uma intimativa ao tempo que fosse menos tardo, opondo, cruel, a resistência 
impalpável, invencível dos minutos, dos segundos, à chegada festiva da boa data.
    Bento Alves, depois de assegurar que unicamente por mim se havia sujeitado à humilhação que 
sofrera, andava propositalmente arredio.
    Eu, solitário, ia e vinha como os outros, percorrendo o pátio, marcando a bocejos os prazos 
alternados de impaciência e resignação, vendo pairar por cima do recreio um papagaio que soltavam 
meninos da rua para as bandas do Ateneu. Invejava-lhe a sorte, ao papagaio cabeceando alegre, 
ondeando a balouçar, estatelando-se no vento, pássaro caprichoso, dominando vermelho o vasto 
retângulo azul que as paredes cortavam no firmamento, solitário, solitário como eu, cativo também - 
mas ao alto e lá fora.
    Relaxava-se o horário; professores faltavam; era menos rude a inspeção. Os alunos iam por toda 
parte à vontade. Faziam roda de palestra nos dormitórios, pilando enfastiadamente os mais duros 
assuntos, murmarações esmoídas, escabrosidades pulverizadas, trituradas malícias, algumas vezes 
malícias ingênuas se é possível, caracterizando-se no conciliábulo o azedume tagarela do cansaço 
podre de um ano, conforme a psicologia de cada salão.
    Os dormitórios apelidavam-se poeticamente, segundo a decoração das paredes: salão pérola, o 
das crianças policiado por uma velha, mirrada e má, que erigira o beliscão em preceito único 
disciplinar, olhos mínimos, chispando, boca sumida entre o nariz e o queixo, garganta escarlate, uma 
população de verrugas, cabeça penugenta de gipaeto sobre um corpo de bruxa; salão azul, amarelo, 
verde, salão floresta, dos ramos do papel, aos quais se recolhia a classe inumerável dos médios. O 
salão dos grandes, independente do edifício, sobre o estudo geral, conhecia-se pela denominação 
amena de chalé. O chalé fazia vida em separado e misteriosa.
    O policiamento dos dormitórios competia aos diversos inspetores, convenientemente 
distribuídos.
    Na época atenuavam-se os zelos da policia. O próprio gipaeto do pérola batia as asas para a 
folia, uma inocente folia de noventa anos.
    A palestra corria desassombrada.
    Deitavam-se uns a uma cama, outros cercavam agrupados nas camas próximas e atacavam os 
assuntos:
     No salão dos médios:
    "D. Ema... D. Ema... não se murmura à toa... Reparem na maneira de falar do Crisóstomo... Tem 
motivo, um rapagão... Palavra que os apanhei sozinhos, juntinhos, conversando, a distancia de um 
beijo..."
    - O melhor é que o Crisóstomo não vai para a rua... Que diabo, nem tanto vale o grego, que se 
pague a beijocas descontadas pela mulher... tenho para mim que o negócio ainda acaba mal e 
porcamente, kakós kai ruparós, com uma estralada...
    - Ora, diretores! empresários! fabricantes de ciência barata e prodígios de carregação, com que 
empulham os papais basbaques... O que querem é a freqüência do negócio... Falam cá em anúncios... 


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Mulher ao balcão... Que chamariz, uma carinha sedutora! Eu por mim, se fosse diretor, inaugurava 
um Kindergarten para taludos; uma bonita diretora à testa e quatro adjuntas amáveis... Não haveria 
nhonhô graúdo que não morresse pelo ensino intuitivo. Como não haviam de pagar para cortar 
pauzinhos no meu jardim! E que serviço ao progresso do meu pais: estimular à Froebel as 
inteligências perrengues e as adolescências atrasadas...
    - Pois eu seria capaz de guerrear o estabelecimento. Se fosse diretor, teria o cuidado de ser 
também ministro do império... Revogava a Instrução Pública e aprovava a minha gente por decreto, 
tudo de pancada e com distinção.
    - Qual! eu, se fosse diretor, seria safado! Não há nada neste mundo como ser safado! Uma 
bonita meninada, que festança! Os meninos gostam da gente, a gente gosta dos meninos e o colégio 
cresce: crescite!... Daí a pouco tanta matricula, que precisaríamos mudar de casa...
    - Que canalha! Que lingüinhas... Safa! Pois eu cá só digo mal daquele tipo do Liceu. Marcelo, 
que tem na face a costura cicatrizada do talho que lhe fez um discípulo em certa aventura com o mais 
pacífico dos utensílios, e que, ainda assim, foi apanhado no Cassino deixando aberto num divã o 
carnet de baile, caidadosamente ilustrado de símbolos... pedagógicos.
    A palestra no pérola era muito mais cândida, e, principalmente, nada pessoal.
    Curso improvisado de obstétrica elementar, para especulação. Todos queriam saber; 
apertavam-se vinte pequenos em roda do problema, como aquelas figuras da lição de Rembrandt. 
Qual a origem das espécies? Eram investigadores. Ninguém adiantava um passo. Estava ausente o 
gipaeto, que talvez pudesse explicar. Feliz quem pode conhecer a causa das coisas! Como é a entrada 
na vida? Ordem dórica? jônica? compósita? As imaginações trabalhadas formigavam avidamente 
sobre a questão; ninguém penetrava. Desenrolavam-se as teorias domésticas, angélico-ginecológicas.
    Havia em Paris uma grande empresa de exportação, da qual eram agentes em todo o mundo os 
porteiros, e comissária central no Rio Mme. Durocher. Vinha o gênero nos berços, encaixotados, 
mijadinhos e chorosos. Esta teoria tinha o merecimento filosófico de prescindir das causas finais. Os 
metafísicos inclinavam-se mais para a intervenção da sobrenatureza: por ocasião do Natal havia de 
noite uma distribuição geral de herdeirozinhos pela terra, chuva de pimpolhos, para compensar a 
matança dos inocentes, tão prejudicial no tempo de Herodes. Inútil dizer que os referidos inocentes 
vinham outrora ao mundo pela mão dos mesmos portadores das credenciais da revelação, hoje em 
desuso.
    E a academiazinha de investigadores arrumava documentos, sorrindo alguns da credulidade 
dos outros, exibindo em refutação credulidade de diverso quilate; alguns, mais positivos, aduzindo 
observações próprias, porque os meninos espiam, oferecendo à opinião dos colegas uma nota 
ponderosa, edificando-se lentamente o sistema como os sistemas se edificam, aproveitando-se 
apenas o elemento franqueado pelo apoio comum.
    Dois últimos pareceres concorreram oportunamente para desatar os embaraços e a assembléia 
dispersou-se. Um cearensezinho, de cabelo à escova, inteligente e silencioso, amigo de responder por 
um jeito especial de virar os olhos. senhor de um sorriso desconcertante que sabia armar a propósito, 
falando baixinho e explícito, introduziu no debate a descrição minuciosa, sem perda de fofos nem 
apanhados, da toilette balneária das mulheres do sertão na província, descendo ao rio, de um belo 
pano simpático em que o raio do sol nascente representa de fio mais grosso. Outro parecer foi a 
grosseira chacota de um caturra barrigudinho, fronte de novilho, miniatura de arrieiro, brutal e 
maroto, filho de um criador abastado do Paraná e instruído para todas as exigências práticas da 
indústria paterna. Estava ali a ouvir desde o principio sem dizer palavra, esperando a conclusão. 
Supondo que o cearense ia fazer a luz, atirou-se adiante, interrompeu-o e concluiu largando o 
enxurro, esponjando-se farto na garotada, como a cria da estância no lodo fresco.
    A vadiagem dos dormitórios não consistia só em palestra. Depravados pelo aborrecimento e 
pela ociosidade, inventavam extravagâncias de cinismo.
    O Cerqueira, ratazana, sujeito cômico, cara feita de beiços, rachada em boca como as romãs 
maduras, de mãos enormes como um disfarce de pés, galopava a quatro pelos salões, zurrando em 


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fraldas de camisa, escoucinhando uma alegria sincera de mu. Maurílio, o dos quinaus, neo era 
exclusivamente o campeão da tatuada que conhecemos; tinha outra habilidade notável e prestava-se 
com aplauso a uma experiência original de fluidos inflamáveis. Este rapaz escapou de morrer, em um 
dos últimos naufrágios da nossa costa; um ex-colega escreveu-lhe: Quem os semeia, colhe 
tempestades.
    As provocações no recreio eram freqüentes, oriundas do enfado; irritadiços todos como feridas; 
os inspetores a cada passo precisavam intervir em conflitos; as importunações andavam em busca das 
suscetibilidades; as suscetibilidades a procurar a sarna das importunações. Viam de joelhos o Franco, 
puxavam-lhe os cabelos. Viam Rômulo passar, lançavam-lhe o apelido: mestre cook!
    Esta provocação era, além de tudo, inverdade. Cozinheiro, Rômulo! só porque lembrava a 
culinária, com a carnosidade bamba, fofada dos pastelões, ou porque era gordo das enxúndias 
enganadoras dos fregistas, dissolução mórbida de sardinha e azeite, sob os aspectos de mais 
volumosa saúde? Rômulo era simplesmente e completamente o confeiteiro das esperanças doces de 
Aristarco.
    Anafado de aparência, e ainda mais ancho de fortuna, significava bem o que se diz um bom 
partido. Aristarco tinha uma filha; saúde, fortuna: um genro ideal; ainda por cima bonachão e pacato.
    A Melica, a altiva e requebrada Amália, lambisgóia, proporções de vareta, fina e longa, morena 
e airosa, levava o tempo a fazer de princesa. Dois grandes olhos pretos, exagero dos olhos pretos da 
mãe, tomavam-lhe a face, dando-lhe de frente a semelhança justa de um belo I com dois pingos. Por 
estes olhos e por sobre os ombros, que tinha erguidos e mefistofélicos, derramavam se desdéns sobre 
tudo e sobre todos. Possuía e petiscava a certeza fácil de que o Ateneu em peso andava caído por ela, 
e morava no andor imaginário daquela idolatria de trezentos. Trezentos corações, trezentos desdéns. 
A eminência do pai sobre aquele mundozinho desprezível dava-lhe vida à vanglória, e ela gostava de 
visitar o colégio para ter ocasião de exercitar a altivez culminante, misturada, do sexo e da hierarquia. 
Quanto a Rômulo, era o primeiro no seu desprezo. Timbrava em não prestar-lhe atenção. Designava-o 
esplendidamente: - o parvo. Melica era bem conservada e preciosa.
    Rômulo filosofava por Epicuro. Desdéns não matam. Havia de bom naquela atitude de noivado 
perene, uma série de utilidade: cargo de vigilante, privilégios de benevolência, um jantar de vez em 
quando com o diretor, - isto é, uma folga ao paladar imaginada em sonho por quantas bocas, no 
regime obrigatório e destemperado da casa, menu permanente, inviolável como a letra das 
constituições.
    Quando vinha Melica ao Ateneu, era Rômulo o primeiro a aproximar-se, o último a ser visto. 
Aristarco chamava-o às vezes e levava a passeio com a menina. Melica, toda donaire e orgulho, 
passava adiante e permitia, quando muito, que Rômulo a seguisse cabisbaixo e mudo, como um 
hipopótamo domesticado. Diga-se, a bem da verdade, que o gorducho esperava rir por último ao pai 
e à filha.
    Em um estabelecimento de rumorosa fama como o Ateneu não se podia deixar de incluir no 
quadro das artes a música de pancadaria.
    Passava despercebido o harmonium do Sampaio, religioso e bálbuce. Estimava-se como coisa 
somenos a rabequinha do Cunha, choramingas e expressiva, nas mãos do esguio violinista; manhoso 
o instrumento como uma casa de maternidade, pálido o músico, espichadinho e clorótico; dando ares 
de graça à linguagem das cravelhas por meio de sons que imitavam a quase afasia timorata e infantil 
do Cunha, descambando em síncopes, de vez em quando, estendendo guinchos histéricos de amor 
vadio, saltitando pizzicatos como as biqueiras de verniz do Cunha, amigo de valsar, ágil no baile 
como as fitas, as plumas e as evaporadas tules.
    Considerava-se razoavelmente o piano do Alberto Souto, bochechas largas de maestro em 
efígie, pianista portento que viera parar ao Ateneu, depois de percorrer a Europa à cata de triunfos, 
redondo, curto e musical como um cilindro de realejo; famoso pela gargalhada soez, bagaço 
espremido da vaidade, da cobiça, que lhe ficara dos sucessos do palco e das surras da aprendizagem; 
e pela estupidez seca nos estudos, como se a inteligência lhe houvesse escapado pelos dedos para os 


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teclados em deserção definitiva.
    Mas a predileção de Aristarco era pela banda, pela pancadaria, grita vibrante dos cobres, 
fuzilaria das vaquetas, levando gente à janela quando o Ateneu passava, dando rebate à admiração 
das esquinas, o estrépito das caixas troando à marcha dobrada como um eco de combates, furor 
infrene, irresistível, de zabumbada em feira.
    A banda tinha casa própria e um professor bem pago. Os instrumentistas gozavam de particular 
favor nos relaxamentos de disciplina; nas ocasiões de festa eram mimoseados com um brinde de 
gulodices; condecoravam-se com distintivos de prata, que nem os harmoniosos concertantes do 
Orfeão logravam pilhar.
    Ainda na banda graduava-se a predileção de Aristarco, segundo a importância de sonoridade 
dos timbres. O grave bombardão, o oficlide, a trompa, o trombone, o próprio sax, destinados ao 
mister secundário de acompanhamento, recuando, como lacaios, na encenação sonora, homens e 
armas servilmente bravos nas investidas brilhantes, ou tímidos pajens, arrepanhando o abandono de 
caudas escapadas ao luxo régio das grandes notas do canto, - valiam menos ainda, na estima do 
diretor, que na marcação da partitura.
    Predileto era o flautim, florete feito som, tênue, penetrante, perfuração de agulhas: predileta era 
a requinta, espécie de flautim rachado, agressiva como a vibração do dardo das serpentes; o fagote, 
aumentativo de requinta, único aparelho capaz de produzir artificialmente a fanhosidade colérica das 
sogras; o claro oboé, laringe metálica de um cantor de epopéias, heróico e belo; o pistão frenético e 
vivo, estandarte à mostra sobre a celeuma, harmonizando, centralizando a instrumentação como um 
regimento de cavalheiros. Prediletos porque gritavam mais! Prediletos principalmente o tambor e o 
bombo tonante, primazia do estrondo, a trovoada das peles tesas, que a tormenta sobraça nos 
arroubos de carnaval canalha dos seus dias e que sobraçava, no Ateneu Rômulo, o graxo Rômulo, o 
nédio, o opulento, o caríssimo genro das esperanças caras.
    Foi exatamente por esta seriação de preferências acústicas que chegou Aristarco à descoberta do 
seu favorito. E por acaso.
    Durante uma festa escolar, exibia-se a banda. Distrai-se o bombo e solta fora de tempo um 
magnífico tiro, que ia bem à composição executada como uma gota de tinta Monteiro numa aquarela. 
Metade dos ouvintes acreditaram que aquilo era um capricho wagneriano enxertado de propósito; 
outra metade não conteve o riso.
    Aristarco admirava o bombo em solo, solidão das salvas em pleno mar, fator grandioso de 
sonoridade que o Zé Pereira multiplica Mas o riso dos convidados incomodou-o.
    Acabada a festa, mandou vir a presença o artista do estampido. Apresenta-se o músico e não sei 
como se entenderam que, em vez de castigo, retirou-se Rômulo do gabinete com os forais vantajosos 
de genro ad honorem.
    O escandaloso favor suscitou uma reação de inveja.
    Rômulo era antipatizado. Para que o não manifestassem excessivamente, fazia-se temer pela 
brutalidade. Ao mais insignificante gracejo de um pequeno, atirava contra o infeliz toda a 
corpulência das infiltrações de gordura solta, desmoronava-se em socos. Dos mais fortes vingava-se, 
resmungando intrepidamente.
    Para desesperá-lo, aproveitavam-se os menores do escuro. Rômulo, no meio, ficava tonto, 
esbravejando juras de morte, mostrando o punho. Em geral procurava reconhecer algum dos 
impertinentes e o marcava para a vindita. Vindita inexorável.
    No decorrer enfadonho das últimas semanas, foi Rômulo escolhido, principalmente, para 
expiatório do desfastio. Mestre cook! via-se apregoado por vozes fantásticas, saídas da terra; mestre 
cook! por vozes do espaço, rouquenhas ou esganiçadas. Sentava-se acabrunhado, vendo se se 
lembrava de haver tratado panelas algum dia na vida; a unanimidade impressionava. Mais 
freqüentemente, entregava-se a acessos de raiva. Arremetia bufando, espumando, olhos fechados, 
punhos para trás, contra os grupos. Os rapazes corriam a rir, abrindo caminho, deixando rolar adiante 
aquela ambulância danada de elefantíase.


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    A uma das vaias estive presente. Rômulo marcou-me. Pouco depois encontrávamo-nos no longo 
corredor que levava à biblioteca do Grêmio. Situação embaraçosa. Eu vinha, ele ia. Parar? Recuar? 
Enquanto hesitava, fui-me adiantando. Rômulo, de salto, empolgou-me a gola da blusa. Sacudia a 
ponto de macerar-me o peito. "Então, seu cachorro (sic), diga me aqui, se é capaz, quem é mestre."
    A injúria equilibrou-me do espanto. Estava tudo perdido. Deitei bravura. "Mestre, mestríssimo 
cook!" gritei-lhe à barba. Não sei bem do que houve. Quando dei por mim, estava estendido embaixo 
de uma escada. Entraram-me na cabeça três pregos, que havia nos últimos degraus. Ponderando que 
tinha no futuro tempo de sobra para vingança, levantei-me e sacudi da roupa a poeira humilhante da 
derrota.
    Afinal, o dia chegou dos exames primários.
    Provas de formalidade para as transições do curso elementar: primeira aula, para a segunda, 
segunda para a terceira, terceira para o ensino secundário.
    Levavam-se assentos e mesas para o salão do oratório, o altar de um reposteiro, e repotreava-se 
a comissão solene, da qual faziam parte personagens da instrução Pública, com o diretor e os 
professores.
    Aristarco representava, na mesa, o voto pensado do guarda-livros. Contas justas: aprovação 
com louvor, cambiando às vezes para distinção simples; atraso de trimestre, aprovação plena com 
risco de simplificação; atraso de semestre, reprovado.
    Havia no Ateneu, fora desta regra, alunos gratuitos, dóceis criaturas, escolhidas a dedo para o 
papel de complemento objetivo de caridade, tímidos como se os abatesse o peso do beneficio; com 
todos os deveres, nenhum direito, nem mesmo o de não prestar para nada. Em retorno, os professores 
tinham obrigação de os fazer brilhar, porque caridade que não brilha é caridade em pura perda.
    Nas provas do terceiro ano, as distinções foram tão numerosas, que me veio ter às mãos uma, 
sem escândalo aliás, que desde muito perdera o medo e começava a quadrar-me a aisance das 
demonstrações, como um mal contaminado do diretor. Fiz um figurão, apanhei a deliciosa nota, que 
levei a mostrar em casa, como um bichinho raro, mimando-lhe o pêlo fino, beijocando-lhe a 
focinheira. Sanches teve louvor; Maurílio, louvor; Cruz, louvor também, graças à especialidade da 
cartilha, em que era provecto, espantando a comissão julgadora com a ladainha toda de Nossa 
Senhora e ameaçando-nos com o calendário de cor. Santo por Santo, observações adjacentes, mais a 
designação das festas móveis e das luas, como o próprio Doutor Ayer das pílulas catárticas o não 
faria, Gualtério, palhaço, foi reprovado. Nascimento, o bicanca, fungou de satisfação: plenamente. 
Negrão, Almeidinha, Álvares, distinção. Contra a distinção deste último, o Professor Mânlio 
protestou surdamente; o bronco do Álvares com distinção! Batista Carlos, o bugre das setas, bomba! 
Diante da comissão mostrou-se muito surpreendido das perguntas, como se tivesse alguma coisa com 
aquilo; Barbalho, bomba. Barbalho pai andava atrasado semestre e meio e Barbalho filho não deixou 
de salvar as aparências com uma escrupulosa colaboração de asneiras. O ótimo, o venerável Rebelo 
não compareceu: deixara o colégio, havia meses, por causa dos olhos.
    Enquanto na sala verde, emparedada de pórfiro polido, esperava, com os colegas, que 
aparecesse à porta o inspetor que devia ler o resultado do escrutínio, foi-me parar a vista aos quadros 
de alto-relevo, das artes e das indústrias. os risonhos meninos nus fraternais, em gesso puro e inocên-
cia. Senti-me velho. Que longa viagem de desenganos! Alguns meses apenas, desde que vira, à 
primeira vez, as ideais crianças vivificadas no estuque pelo contágio do entusiasmo ingênuo, ronda 
feliz do trabalho... Agora, um por um que os interpretasse, aos pequenos hipócritas mostrando as 
nádegas brancas com um reverso igual de candura, um por um que os julgasse, e todo aquele gesso 
das facezinhas rechonchudas coraria de uma sanção geral e esfoladora de palmadas. Não me 
enganavam mais os pequeninos patifes. Eram infantis, alegres, francos, bons, imaculados, saudade 
inefável dos primeiros anos, tempos da escola que não voltam mais!... E mentiam todos!... Cada rosto 
amável daquela infância era a máscara de uma falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia-se ali de 
pureza a malícia corruptora, a ambição grosseira, a intriga, a bajulação. a covardia, a inveja, a 
senssualidade brejeira das caricaturas eróticas, a desconfiança selvagem da incapacidade, a emulação 


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deprimida do despeito, a impotência, o colégio, barbaria de humanidade incipiente, sob o fetichismo 
do Mestre, confederação de instintos em evidência, paixões, fraquezas, vergonhas, que a sociedade 
exagera e complica em proporção de escala, respeitando o tipo embrionário, caracterizando a hora 
presente, tão desagradável para nós, que só vemos azul o passado, porque é ilusão e distância.
    Para a exposição dos desenhos foram retiradas as carteiras da sala de estudo, forradas de cetim 
escuro as paredes e os grandes armários. Sobre este fundo, alfinetaram-se as folhas de Carson, 
manchadas a lápis pelo sombreado das figuras, das paisagens, pregaram-se, nas molduras de friso de 
ouro, os trabalhos reputados dignos desta nobilitação.
    Eu fizera o meu sucessozinho no desenho, e a garatuja evoluíra no meu traço, de modo a merecer 
encômios. A principio, o bosquejo simples, linear, experiência da mão; depois, os esbatimentos de 
tons que consegui logo como um matiz de nuvem: depois, as vistas de campo, folhagem rendilhada 
em bicos, pardieiros em demolição pitoresca da escola francesa, como ruínas de pau podre, armadas 
para os artistas. Depois de muito moinho velho, muita vivenda de palha, muito casarão deslombado, 
mostrando as misérias como um mendigo, muita pirâmide de torre aldeã esboçada nos últimos 
planos, muita figurinha vaga de camponesa, lenço em triângulo pelas costas, rotundas ancas, saias 
grossas em pregas, sapatões em curva, passei ao desenho das grandes copias, pedaços de rosto 
humano, cabeças completas, cabeças de corcel; cheguei à ousadia de copiar com toda a magnificência 
das sedas, toda a graça forte do movimento, uma cabra de Tibete!
    Depois da distinção do curso primário, foi esta cabra o meu maior orgulho. Retocada pelo 
professor, que tinha o bom gosto de fazer no desenho tudo quanto não faziam os discípulos, a cabra 
tibetana, meio metro de altura, era aproximadamente obra-prima. Ufanava-me do trabalho. Não quis 
a sorte que me alegrasse por muito. Negaram-me à bela cabra a moldura dos bons trabalhos; ainda em 
cima - considerem o desespero! exatamente no dia da exposição, de manhã, fui encontrá-la borrada 
por uma cruz de tinta, larga, de alto a baixo, que a mão benigna de um desconhecido traçara. Sem 
pensar mais nada, arranquei à parede o desgraçado papel e desfiz em pedaços o esforço de tantos dias 
de perseverança e carinho.
    Quando os visitantes invadiram a sala, notaram na linha dos trabalhos suspensas duas 
enigmáticas pontas de papel rasgado. Estranhavam, ignorando que ali estava, interessante, em último 
capitulo, a história de uma cabra, de uma cruz, drama de desespero e espólio miserando de uma 
obra-prima que fora.
    As exposições artísticas eram de dois em dois anos, alternadamente com as festas dos prêmios. 
Conseguia-se assim uma quantidade fabulosa de papel riscado para maior riqueza das galerias. 
Cobria-se o metim desde o soalho até ao teto. Havia de tudo, não só desenhos. Alguns quadros a 
óleo, do Altino, risonhas aguarelas acidentando a monotonia cinzenta do Fáber, do Conté, do fusain. 
Os futuros engenheiros aplicavam se às aguadas de arquitetura, aos desenhos coloridos de máquinas.
    Entre as cabeças a creiom retinto, crinas de ginete, felpas de onagro lanzudo, inclinando o funil 
das orelhas, cerdosas frontes hirsutas de javalis, que arreganhavam presas, perfis de audácia em 
colarinhos de renda, abas atrevidas de feltro, plumas revoltas, fisionomias de marujo, selvagens, 
arrepiadas, num sopro de borrasca, barbas incultas, carapaça esmurrada sobre a testa, cachimbo aos 
dentes; entre todas estas caras, avultava uma coleção notável de retratos do diretor.
    O melindroso assunto fora inventado pela gentileza de um antigo mestre. Preparou-se modelo; 
um aluno copiou com êxito; e, depois, não houve mais desenhista amável que não entendesse 
zeladamente dever ensaiar-se na respeitável verônica. Santo Deus! que ventas arranjavam ao pobre 
Aristarco! Era até um desaforo! Que olhos de blefarite! que bocas de beiços pretos! que calúnia de 
bigodes! que invenção de expressões aparvalhadas para o digno rosto do nobre educador!
    Não obstante, Aristarco sentia-se lisonjeado pela intenção. Parecia-lhe ter na face a cocegazinha 
sutil do creiom passando, brincando na ruga mole da pálpebra, dos pés-de-galinha, contornando a 
concha da orelha, calcando a comissura dos lábios, entrevista na franja dos fios brancos, definindo a 
severa mandíbula barbeada, subindo pelas dobras oblíquas da pele ao nariz, varejando a pituitária, 
extorquindo um espirro agradável e desopilante.


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    Por isso eram acatados os desenhistas da verônica.
    Os retratos todos, bons ou maus, eram alojados indistintamente nas molduras de recomendação. 
Passada a festa, Aristarco tomava ao quadro o desenho e levava para casa. Tinha-os já às resmas. Às 
vezes, em momentos de esplim, profundo esplim de grandes homens, desarrumava a pilha; forrava de 
retratos, mesas, cadeiras, pavimento. E vinha-lhe um êxtase de vaidade. Quantas gerações de 
discípulos lhe haviam passado pela cara! Quantos afagos de bajulação à efígie de um homem 
eminente! Cada papel daqueles era um pedaço de ovação, um naco de apoteose.
    E todas aquelas coisas malfeitas animavam-se e olhavam brilhantemente. "Vê, Aristarco", 
diziam em coro, "vê; nós que aqui estamos, nós somos tu, e nós te aplaudimos!" E Aristarco, como 
ninguém na terra, gozava a delícia inaudita, ele incomparável, único capaz de bem se compreender e 
de bem se admirar - de ver-se aplaudido em chusma por alter egos, glorificado por uma multidão de 
si-mesmos. Primus inter pares.
    Todos, ele próprio, todos aclamando-o.

VIII


    No ano seguinte, o Ateneu revelou-se-me noutro aspecto. Conhecera-o interessante, com as 
seduções do que é novo, com as projeções obscuras de perspectiva, desafiando curiosidade e receio; 
conhecera-o insípido e banal como os mistérios resolvidos, caiado de tédio; conhecia-o agora 
intolerável como um cárcere, murado de desejos e privações.
    Desenvolvido à força e habilitado no torvelinho moral do internato, aproveitara os dois meses 
de feriado para espreitar a animação da vida exterior. A sala, a sociedade, os negócios da praça 
pública, que na infância são como contatos de nevoeiros resvalando pela imaginação, que nos 
despertam com um estardalhaço de pesadelo, que fogem, que somem-se, deixando-nos 
readormecidos no esquecimento da idade, ao tempo em que preferimos da soirée os bens-bocados, 
das toilettes os laços de cores rútilas, ignorando que há talvez na vida alguma coisa mais açúcar que o 
açúcar, e que o toque macio pode uma vez levar vantagem à coloração fulgurante, quando invejamos 
das posições sociais modestamente o garbo de Faetonte nos carros de praça ou a bravura rubente de 
umas calças de grande uniforme, sem saber que as ambições vão mais alto e que há comendadores; o 
movimento do grande mundo não me aparecia mais como um teatro de sombras. Comecei a penetrar 
a realidade exterior como palpava a verdade da existência no colégio. Desesperava-me então ver-me 
duplamente algemado à contingência de ser irremissivelmente pequeno ainda e colegial. Colegial, 
quase calceta! marcado com um número, escravo dos limites da casa e do despotismo da 
administração.
    Havia a escassa compensação dos passeios. Uniformizava-se de branco o colégio como para as 
festas de ginástica, com os gorros de cadarço e saiamos a dois, a quatro de fundo, tambores, clarins à 
frente.
    No ano anterior, os passeios tinham sido insignificantes, marchas alegres pelo arrabalde. 
Vinham ao peitoril as mocinhas, e nós todos, anchos de militarismo, despendíamos elegância 
prodigamente. Eram melhores as excursões à montanha. Subíamos aos Dois irmãos, caminho do 
Corcovado, marchávamos até à Caixa-d'Água. Ai debandávamos na ameníssima chapada.
    Os passeios eram depois do jantar. À noitinha voltávamos, dando balanço às notas de 
sensações, um deslumbramento verde de floresta, um retalho de afogueado crepúsculo, um canto de 
cidade ao longe diluído em fumaça cor de pérola, ou o olhar de uma dama e o sorriso de outra, 
projetis inofensivos de namoro que na hipótese de andar a gente em forma têm o defeito da incerteza, 
se vêm expressamente a nós, se ao vizinho, e a nós apenas por uma casualidade de ricochete - o 
ciúme eterno dos cerra-filas que a Praia Vermelha conhece.
    Os nossos passeios foram mais consideráveis.
    Primeiro ao Corcovado, assalto ao gigante, hoje domado pela vulgaridade da linha férrea.


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    Às 2 horas da noite, troaram os tambores como em quartel assaltado. Os rapazes, que mal 
havíamos dormido, na excitação das vésperas, precipitaram-se dos dormitórios. Às 3 e pouco 
estávamos na serra.
    Aristarco rompia a marcha, valente como um mancebo, animando a desfilada como Napoleão 
nos Alpes.
    Passeio noturno de alegria sem nome. As árvores beiravam a estrada de muros de sombra num e 
noutro ponto rendada de frestas para o céu límpido. No caminho, trevas de túnel e agitação confusa 
das roupas, malhada a esmo de placas de luar brando - reptil imenso de cinza e leite em vagarosa 
subida. Que sonho de cócegas experimentaria o colosso, na dormência de pedra que o prostrava 
ainda, espezinhado pela invasão! Subíamos. Pelas abertas do arvoredo devassávamos abismos; ao 
fundo, a iluminação pública por enfiadas, como rosários de ouro sobre veludo negro.
    A boa altura, acampamos para o café. Criados que nos precediam com o farnel, improvisaram 
um balcão, e nos serviam sucessivamente na ordem da forma. Felizes alguns, conseguiram uma gota 
de fino Porto, mais quente que o café, reforçando com um banho interno de conforto contra a 
umidade da altitude e da hora, inflamando a coragem como um punch, avivando a alegria como um 
brinde de fogo.
    O espaço aparecia mais claro sobre a renda das ramas; as últimas estrelas por entre as folhas 
emurcheciam como jasmins, e fechavam-se. Aristarco deu ordens à banda. A subida recomeçou em 
festa, um dobrado triunfal rasgou o silêncio das montanhas espavorindo a noite; o bombo de Rômulo 
trovejou robusto, com imensa admiração da passarada que o espiava metendo o bico à beira dos 
ninhos, que o cobiçava talvez para genro, aturdindo os ecos com um repente brutal de alvorada.
    Ao passo que nos elevávamos, elevava-se igualmente o dia nos ares. Apostava-se a ver quem 
primeiro cansava. Cada avanço da luz no espaço era como um excitante novo para a jornada, 
suavizando a doçura do alvorecer todo o esforço da ascensão. Quando a música parava, ouvíamos na 
alvenaria do grande encanamento, pelos respiradouros, as águas do Carioca, ciciando queixas 
poéticas de náiade emparedada.
    Avistávamos por hiatos de perspectiva a baia, o Oceano vastamente desdobrado em chamas, 
extenso cataclismo de lava.
    No planalto do Chapéu de Sol paramos. O diretor convencionou que, ao sinal de debandar, 
assaltaríamos na carreira o espigão de granito empinado à extrema do monte. A rapaziada aclamou a 
proposta e, com um alarido bárbaro de peleja, arrojamo-nos à conquista da altura.
    Chegou na frente o Tonico, meninote nervoso, de São Fidélis, especialista invicto da carreira, 
corredor de prática e princípios, que de cada exame da Instrução Pública fugia duas vezes à chamada, 
entendendo que a fuga é a expressão verdadeira da força, e a bravura uma invenção artificial dos que 
não podem correr.
    Rômulo fez a asneira de tentar o espigão; ficou a meio caminho, sufocado, inanimado, roncando 
por terra.
    Almoçamos às dez horas, cada um para seu lado, depois da distribuição frugal do mantimento. 
Fartos de paisagem, formamos para a descida.
    Descida penosa. Tínhamos imprudentemente esgotado as forças na folgança. A marcha de volta 
foi uma miséria. Formamos ainda, mas já não havia quem olhasse para o alinhamento. As correias 
frouxas escapavam à cintura, as blusas às correias; os pés cambavam, mal equilibrados no calçado, 
bambeavam os joelhos passadas de bêbado.
    As crianças adiante voltavam os olhos dolorosamente para o diretor, segurando-se uns aos 
outros pelos ombros, seguindo em grupos atropelados como carneiros para a matança. Aristarco, tão 
lépido como na subida, estimulava o seu povinho, chasqueando compadecidas ironias.
    Quis recorrer ao estimulante da música. Os músicos, derreados, haviam deixado os instrumentos 
na carroça da matalotagem que vinha longe. Nem tambores, nem clarins; apenas Rômulo, atrás de 
todos, trazia o bombo de roldão pela estrada como uma pipa.
    Por maior tormento, fundia-se a soalheira em chumbo ardente sobre nós, acendendo reflexos 


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insuportáveis na areia da estrada, enquanto reverberava o dia lá embaixo, sobre as casas, pelos jardins 
nublados de vaporizações de estio, sobre a vegetação das montanhas, a florescer das tristes flores da 
Paixão da aleluia.
    Voltávamos de um dia alegre como soldados batidos. A ordem de marcha decompôs-se aos 
poucos. Quando chegamos ao Rio Comprido, íamos por bandos dispersos, arquejantes, os de maior 
fôlego na vanguarda; depois, em cauda interminável de alquebramento, os mais fracos, até aqueles 
que ficavam pelo chão como enfermos, e que os inspetores buscavam como gado perdido.
    No portão do Ateneu, mãos às cadeiras, dentinhos brancos à vista, esperava-nos Ângela, fresca 
e forte, e recebia com uma vaia de risadas aquela entrada de vencidos, homens e moços.
    Quando, tempos passados, anunciou-se o grande piquenique ao Jardim Botânico, certo não foi 
objeção a lembrança deste descalabro de fadiga. Tínhamos almoçado na montanha; tratava-se agora 
de ir jantar ao jardim. Prontos!
    Ao meio-dia, apeava o Ateneu dos bondes especiais à porta do grande parque. Atravessamos 
cantando um dos hinos do colégio as arcarias elevadas de palmas. Junto ao lago da avenida, 
debandamos.
    No bosque dos bambus, à esquerda, estavam armadas as longas mesas para o banquete das 
quatro horas. Graças à boa vontade dos pais, prevenidos oportunamente, vergavam as tábuas, sobre 
cavaletes, ao peso de uma quantidade rabelaisiana de acepipes. À parte, em cestos, no chão, 
amontoavam-se frutas, caixas e frascos de confeitaria.
    Era por um desses dias caprichosos, possíveis todo o ano, mais freqüentes de verão, em que as 
bátegas de chuva fazem alternativa com as mais sadias expansões de sol, deliciosos e traidores, em 
que, parece, a alma feminina se faz clima com as incertezas de pranto e riso.
    Chovera uma vez ao partirmos, outra vez em viagem; havia no jardim muita umidade na relva e 
sob as folhas caídas; às alamedas de mais sombra, via-se a areia crivada recentemente dos pequeninos 
frutos que cava o gotejar do arvoredo. Mas eram tão claros os trechos de bom tempo, no intervalo dos 
nimbos, que não podiam apreensões de aguaceiro entibiar a franqueza de alegria a que estávamos 
preparados.
    A rapaziada dispersou-se pelos gramados para a montanha, para os canaviais e pomares de 
ingresso vedado. Alguns, munidos de anzóis, acocoravam-se à beira do açude, como batráquios, 
enquanto esperavam que picasse a probabilidade difícil de um peixe.
    Os de espírito calmo buscavam sítios de soledade, iam passear a cisma silenciosa; os 
sentimentais, com o instinto dos fotógrafos paisagistas, ensaiavam, comparavam, aplaudiam os 
melhores pontos de vista, ou, simplesmente, dois a dois, íntimos, seguiam para longe, braços pela 
cintura, balbuciando diálogos lentos. Os menores corriam, armando animadíssimos brincos, 
atiravam-se às borboletas, iam pelos cursos d'água canalizada através do parque, perseguindo a fuga 
de um graveto, trépido, inalcansável na evasão rápida da linfa. Nos enredamentos obscuros do 
bosque, exatamente onde o artista grego incluiria um sátiro, podia-se surpreender sob uma blusa o 
confiado abandono bucólico de outros colegas.
    De quando em quando, um sinal de clarim. Tocava-se a reunir e fazia-se a distribuição das 
gulodices. Muitos não compareciam.
    Às quatro horas a banda de música assinalou com o hino nacional o grande momento da festa 
campestre.
    De todos os pontos do jardim começaram a chegar magotes pressurosos de uniformes brancos. 
Os vigilantes, enérgicos, regularizavam a ocupação dos lugares.
    Ao correr da mesa, fechou-se o bloqueio ameaçador de dentaduras. No centro alinhavam-se as 
peças, sem conta, frias, sem molho, apetitosas, entretanto, da cor tostada e do aroma suculento.
    Os garfos agitavam-se inimigos, amolavam-se os trinchantes nas mãos dos copeiros...
    Obrigados a uma sobranceria estóica de filósofos, depois da provação definitiva do forno, nem 
os perus, nem os leitões, nem os tímidos frangos mostravam aperceber-se da situação arriscada.
    Os frangos, de pernas para trás, sobre o dorso, cabeça escondida na asa, pareciam dormir 


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sonhando o calembur das penas perdidas; os redondos bácoros, encouraçados na bela cor de 
torresmo, serviam-se dos olhos de azeitona para não mais ver as seduções mentidas da existência, 
empenhados em ensinar aos homens como se leva a cabo o suplício culinário dos palitos, com a 
agravante azeda dos limões em rodela; os perus, soberbos até à última e menos filosóficos, 
prescindiam francamente da cabeça, orgulhosos apenas da vastidão do peito, enfunando a vaidade 
cheia do papo, hipertrofia de farofa.
    Guarnecendo os assados, perfilavam-se as garrafas pretas desarrolhadas, conglobavam-se 
montes de maças, peras, laranjas, apoiadas às nacionalíssimas bananas, como um traço de nativismo. 
Os pudins, as marmeladas, as compotas enchiam os vãos da toalha, com um zelo apertado de 
mediador plástico. Mesmo sem meter em conta as postas de rosbife com que contribuirá Aristarco, 
percebe-se que era de truz o jantar.
    Quando os rapazes sentaram-se, em bancos vindos do Ateneu de propósito, e um gesto do 
diretor ordenou o assalto, as tábuas das mesas gemeram. Nada pôde a severidade dos vigilantes 
contra a selvageria da boa vontade. A licença da alegria exorbitou em canibalismo.
    Aves inteiras saltavam das travessas; os leitões, à unha, hesitavam entre dois reclamos 
igualmente enérgicos, dos dois lados da mesa. Os criados fugiram. Aristarco, passando, sorria do 
espetáculo como um domador poderoso que relaxa. As garrafas, de fundo para cima, entornavam rios 
de embriaguez para os copos, excedendo-se pela toalha em sangueira. Moderação! moderação! 
clamavam os inspetores, afundando a boca em aterros de farofa dignos do Sr. Revy. Alguns rapazes 
declamavam saúdes, erguendo, em vez de taça, uma perna de porco. À extremidade da última das 
mesas um pequeno apanhara um trombone e aplicava-se, muito sério, a encher-lhe o tubo de carne 
assada. Maurílio descobriu um repolho recheado e devorava-o às gargalhadas, afirmando que era 
munição para os dias de gala. Cerqueira, ratazana, curvado, redobrado, sobre o prato, comia como 
um restaurante, comia, comia, comia como as sarnas, como um cancro. Sanches, meio embriagado, 
beijava os vizinhos, caindo, com os beiços em tromba. Ribas, dispéptico, era o único retraído; 
suspirava de longe, anjo que era, diante dos reprovados excessos da bacanal.
    Em meio do tumulto ebrifestante, ouviram-se palmas. À cabeceira da mesa principal, 
apresentavam-se de pé Aristarco e o empertigadinho e cúprico Professor Venâncio. Era a poesia! 
Venâncio de Lemos costumava improvisar, mais ou menos previamente, estrofes análogas nas festas 
campestres...
    Outros professores, que tinham concorrido ao piquenique, davam-se à faina grosseira de jantar. 
Ele, não.
    Havia um quarto de hora que andava misteriosamente por uma aléia de bambus, esfiapando as 
barbicas, a gaforina, palpando a testa, arrancando inspiração ao couro cabeludo, passando, nervoso, 
repassando, espiado furtivamente pela nossa admiração. Ninguém ousava acercar-se, temendo 
perturbar a elaboração do gênio.
    Muxoxos adoráveis das brisas, que andais pela mata, gemedoras fontes, que desfiais à toa as 
lágrimas de vossos penares, amáveis sabiás cantores, que viveis de plantão na palmeira da literatura 
indígena, sem que vos galardoe uma verba da secretaria do império, vinde comigo repartir o segredo 
do vosso encanto! Sedutoras rolinhas, um pouco da vossa ternura! Vividos colibris, a mim! que sois 
como os animados tropos no poema frondoso da floresta... E as inspirações vieram. Primeiro, 
cerimoniosamente, à altura, volteando espirais de urubu sobre a carniça; depois, de chofre, caindo-lhe 
às bicadas sobre o estro. O estro entorpecido acordou. Fez-se hipogrifo um asno morto. O poeta foi 
registrando as estrofes.
    Quadras de rima fácil de particípios, espancados pelo camartelo contundente dos agudos.
    Sustou-se em toda a linha o furor gastronômico dos rapazes. Ficamos a ouvir, surpresos.
    Murmuraram as brisas; as fontes correram; tomaram a palavra os sabiás; surgiram palmeiras em 
repuxo; houve revoadas de juritis, de beija-flores; todas essas coisas, de que se alimentam versos 
comuns e de que morrem à fome os versejadores. Súbito, no melhor das quadras, exatamente quando 
o poeta apostrofava o dia sereno e o sol, comparando a alegria dos discípulos com o brilho dos 


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prados, e a presença do Mestre com o astro supremo, mal dos improvisos prévios! desata-se das 
nuvens espessadas uma carga-d'água diluvial, única, sobre o banquete, sobre o poeta, sobre a 
miseranda apóstrofe sem culpa. 
    Venâncio não se perturbou. Abriu um guarda-chuva para não ser inteiramente desmentido pelas 
goteiras e continuou, na guarita, a falar entusiasticamente ao sol, a limpidez do azul. 
    Não querendo desprestigiar o estimável subalterno, Aristarco fingia acreditar no improviso e, 
indiferente, deixava cair o aguaceiro. As abas do chapéu de palha murchavam-lhe ao redor da cabeça, 
o rodaque branco desengomava-se em pregas verticais gotejantes.
    Para os rapazes a chuva foi novo sinal de desordem. Deixou-se o poeta com a sua inspiração 
arrebatadora de bom tempo; recomeçou a investida aos pratos.
    A abóbada de folhagem que nos cobria, em vez de atenuar a violência das águas, concorria para 
fazer mais grossos os pingos. Pouco importava. A filosofia impermeável do diretor servia-nos 
também de capa. Que chovesse! Era o molho dos manjares que nos faltava. As frutas lavadas luziam 
com um verniz de frescura que o próprio outono não possui. O vinho estendia-se pela toalha 
encharcada numa generalização solene de púrpura. O banho oportuno do banquete vinha temperar a 
demasiada aridez das farinhas de recheio. "Acabamos pela sopa, descobriu Nearco, o penetrante, por 
onde o vulgo principia!"
    Qual acabávamos! Ninguém acabou. Sucedeu que, com os fundilhos molhados, ninguém quis 
mais sentar-se. Girou o atropelo ao redor das mesas; os bancos foram repelidos a pontapés. 
Repartia-se o doce sem eqüidade; quem não avançava a tempo ficava sem ele. Dois inspetores, João 
Numa e o Conselheiro, a pretexto de decidir uma contenda, arranjaram-se com uma caixa de 
pessegada e desapareceram.
    A chuva desculpava a bebida. Era inacreditável o consumo de brindes. Brindes a Aristarco, 
brindes aos companheiros, ao Silvino, ao poeta, ao sol, aos temporais, ao trovão escandinavo; 
inimigos figadais, no transporte do prazer, reconciliaram-se; Barbalho saudou-me fogosamente. 
Rômulo, já tonto, afastado das mesas, brindava o copeiro que lhe arranjara uma garrafa; depois 
brindou a noiva; o criado, bebendo também, tocou-lhe o copo.
    Como escurecia, o diretor fez o clarim chamar à forma.
    Debaixo do aguaceiro que não cessava, o colégio alinhou-se como bem pôde. Muitos, 
queixando-se de saúde delicada, obtiveram dispensa desta inoportuna disciplina de equilíbrio; 
seguiram adiante para o portão abrigado do jardim... Após, fomos os outros, em marcha regular, 
pingando de molhados. A fita vermelha dos gorros desbotava-se-nos pelo rosto em fios sanguíneos.
    Quando chegamos ao portão, já nos esperavam os bondes especiais. Do outro lado da rua, à 
entrada do conhecido restaurante, apareceu a família do Aristarco com alguns professores, que lá 
tinham jantado. D. Ema, pelo braço do Crisóstomo, a Melica altivamente só e distanciada.
    No colégio, tivemos ordem de subir a descanso nos dormitórios. Preventivo louvável de 
prudência, depois dos excessos e da tempestade sofrida. O descanso foi simplesmente um 
prolongamento da pândega do passeio. Para cessar a desordem, tocou-se a estudo... Baixamos ao 
salão geral. Aristarco, reassumindo a dureza olímpica da seriedade habitual, apresentou-se e 
perguntou asperamente se pretendíamos que a vida passasse a ser agora um piquenique perpétuo na 
desmoralização. Tacitamente negamos e a tranqüilidade normal entrou nos eixos.
    Não sabíamos que, a essas horas, preparava o segredo da alta justiça uma trama de intrigas, que 
devia estragar em terrores a lembrança do grande passeio.
    A hora da ceia, na mesma porta em que se lia a gazetilha das aulas, sombrio como nunca, 
vagaroso como os compassos de réquiem, tétrico como o Juízo Final, entrou o diretor.
    Pausa preliminar, frêmito de sensação pelo refeitório: "Tenho a alma triste", começou, 
cavernosamente. Uma cinta de trovões no horizonte, restos da tormenta da tarde, faziam fundo às 
palavras em coro esquiliano.
     "Tenho a alma triste. Senhores! A imoralidade entrou nesta casa! Recusei-me a dar crédito, 
rendi-me à evidência..." Com todo o vigor tenebroso dos quadros trágicos, historiou-nos uma 


[Linha 3300 de 4767 - Parte 3 de 4]


aventura brejeira. Uma carta cômica e um encontro marcado no Jardim. "Ah! mas nada me escapa... 
tenho cem olhos. Se são capazes, iludam-me! Está em meu poder um papel, monstruoso corpo de 
delito! assinado por um nome de mulher! Há mulheres no Ateneu, meus senhores!"
    Era uma carta do Cândido, assinada Cândida.
     "Esta mulher, esta cortesã fala-nos da segurança do lugar, do sossego do bosque, da solidão a 
dois... um poema de pouca-vergonha! É muito grave o que tenho a fazer. Amanhã é o dia da justiça! 
Apresento-me agora para dizer somente: serei inexorável, formidando! E para prevenir: todo aquele 
que direta ou indiretamente se acha envolvido nesta miséria... tenho a lista dos comprometidos... e 
que negar espontâneo auxilio ao procedimento da justiça, será reputado cúmplice e como tal: 
punido!"
    Este convite era um verdadeiro arrastão. Remexendo a gaveta da consciência e da memória, 
ninguém havia, pode-se afirmar, que não estivesse implicado na comédia colegial dos sexos, ao 
menos pelo enredo remoto do ouvi dizer. Ouvir dizer e não denunciar logo, era um crime, dos grandes 
na jurisprudência costumeira. A devassa prometida fazia alarma geral. Como prever as complicações 
do processo? Como adivinhar o segredo tremendo da lista?
    Aristarco ufanava-se de perspicácia de inquisidor. Sob a saraivada das perguntas, ameaças, 
promessas, o interrogado perturbava-se, comprometia-se, entregava-se e traia os outros; nos 
processos do gabinete, os fatos floresciam em carimbo, frutificavam em cacho; a pesquisa de uma 
culpa descobria três, sem contar as ramificações da cumplicidade de outiva.
    Ao retirar-se, o diretor deixou na sala uma estupefação de pavor.
    Eu, particularmente, tinha valiosos motivos de sobressalto. A guerra latente que já me ligava ao 
diretor, como as conjunções disjuntivas, exacerbara-se com um episódio gravíssimo, rompimento 
decisivo.
    A caminho da biblioteca, no mesmo lagar do infeliz encontro com o enorme Rômulo, achei-me 
inesperadamente com o Bento Alves.
    As simpatias do excelente companheiro não tinham diminuído. Durante as férias, fora ver-me 
em casa, travando relações com a minha família Fui recomendado insistidamente ao amigo, que me 
valesse, nas dificuldades da vida colegial, contra o constante perigo da camaradagem perniciosa. 
Durante o mês de janeiro não nos vimos. Por ocasião da abertura das aulas, notei-lhe um calor novo 
de amizade, sem efusões como dantes, mas evidentemente testemunhado por tremores da mão ao 
apertar a minha, embaraços na voz de amoroso errado, bisonho desviar dos olhos, denunciando a 
relutância de movimentos secretos e impetuosos. Às vezes mesmo, um reflexo assustador de loucura 
acentuava-se-lhe nos traços.
    Interessava-me aquela agonia comprimida. Estranha coisa, a amizade que, em vez da 
aproximação franca dos amigos, podia assim produzir a incerteza do mal-estar, uma situação 
prolongada de vexame, como se a convivência fosse um sacrifício e o sacrifício uma necessidade.
    Durante os primeiros dias do ano, poucos alunos chegados, ficávamos horas inteiras em 
companhia. Trouxera-me um presente de livros, com dedicatória a cores de bela caligrafia, inscrita em 
rosas entrelaçadas de cromo. Recordo-me também de um dulcíssimo cofre dourado de partilhas e 
outras ridicularias de amabilidade que me oferecia, passado de vergonha pela insignificância do 
obséquio. Confusamente ocorria-me a lembrança do meu papelzinho de namorada faz-de-conta, e eu 
levava a seriedade cênica a ponto de galanteá-lo, ocupando-me com o laço da gravata dele, com a 
mecha de cabelo que lhe fazia cócega aos olhos; soprava-lhe ao ouvido segredos indistintos para 
vê-lo rir, desesperado de não perceber. Uma das irmãs casara no Rio Grande; ele mostrou-me o 
retrato do noivo, um par de bigodes negros descaídos, com a noiva, um rosto oval correto e paro, o 
turbilhão nevoento dos véus. Deu-me um botão de flor de laranjeira que tinham remetido.
    Andavam assim as coisas, em pé de serenidade, quando ocorreu a mais espantosa mudança.
    Não sei que diabo de expressão notei-lhe no semblante, de ordinário tão bom. Desvairamento 
completo. Apenas me reconheceu, atirou-se como fizera Rômulo e igualmente brutal. Rolamos ao 
fundo escuro do vão da escada. Derribado, contundido, espancado, não descurei da defesa. Entrevi 


[Linha 3350 de 4767 - Parte 3 de 4]


na meia obscuridade do recanto um grande sapato embolorado. Lutando na poeira, sob o joelho 
esmagador do assaltante, ataquei-lhe a cabeça, a cara, a boca, a formidáveis golpes de tacão, 
apurando a energia de sola ferrada com a onipotência dos extremos. Bento Alves deixou-me 
bruscamente.
    Tínhamos lutado em silêncio, sem que nada mais se ouvisse do que os encontrões pelo soalho. 
No corredor, entretanto, vimos Aristarco que chegava como em socorro. Bento Alves passou; 
imobilizou-o com o olhar sem vista, esgazeado, medonho, de quem acaba de perpetrar um homicídio 
e desapareceu, trôpego, manchado de pó, lábios inflamados, desordem nos cabelos.
    Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o adversário, empoeirado e 
sujo como de rolar sobre escarros.
    Respondi-lhe com violência.
     "Insolente!" rugiu o diretor. Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com 
a outra pela nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu. "Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! 
Bandalhozinho impudente! Confessa-me tudo ou mato-te."
    Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a excitação do primeiro 
combate; não podia olhar conveniências de respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um 
escorpião pisado. O diretor arremessou-me ao chão. E, modificando o tom, falou: "Sérgio! ousaste 
tocar-me!"
    - Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.
    - Criança! feriste um velho!
    Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.
    - Fui vilmente injuriado, disse. Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e 
os parricidas serão malditos.
    O tom comovido deste final inesperado impressionou-me até o intimo da alma. Estava vencido. 
Fiquei por um minuto horrorizado de mim mesmo. De volta do atordoamento, achei-me só no 
corredor. A saída dramática do diretor aumentou-me ainda remorsos. Houve uma reação de esforço 
moral e desatei nervosamente em pranto, chorei a valer, amparando-me ao peitoril de uma janela.
    Contava certo com um castigo excepcional, uma cominação qualquer do célebre código do 
arbítrio, em artigo cujo grau mínimo fosse a expulsão solene.
    Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despedira-se do 
Ateneu na mesma tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade 
era um caso especial do afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da 
minha consciência o encargo da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena 
perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não 
se duvida, mas sem testemunhas.
    O caso morreu em segredo de discrição, encontrando-nos eu e o diretor num conchavo bilateral 
de reserva, como se nada houvesse.
    O ressentimento, porém, devia ser fundo e a perspectiva tormentosa do processo ameaçava-me 
como o ensejo iminente da desforra.
    Não foi possível dormir tranqüilo.
    À hora do primeiro almoço, como prometera, Aristarco mostrou-se em toda a grandeza fúnebre 
dos justiçadores. De preto. Calculando magnificamente os passos pelos do diretor, seguiam-no em 
guarda de honra muitos professores. À porta fronteira, mais professores de pé e os bedéis ainda, e a 
multidão bisbilhoteira dos criados.
    Tão grande a calada, que se distinguia nítido o tique-taque do relógio, na sala de espera, 
palpitando os ansiados segundos.
    Aristarco soprou duas vezes através do bigode, inundando o espaço com um bafejo de 
todo-poderoso.
    E, sem exórdio:
    "Levante-se, Sr. Cândido Lima!


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    "Apresento-lhes, meus senhores, a Sr.a D. Cândida", acrescentou com uma ironia desanimada.
    "Para o meio da casa! e curve-se diante dos seus colegas!"
    Cândido era um grande menino, beiçudo, louro, de olhos verdes e maneiras difíceis de 
indolência e enfado. Atravessou devagar a sala, dobrando a cabeça, cobrindo o rosto com a manga, 
castigado pela curiosidade pública.
    "Levante-se, Sr. Emílio Tourinho...
    Este é o cúmplice, meus senhores!"
    Tourinho era um pouco mais velho que o outro, porém mais baixo; atarracado, moreno, ventas 
arregaladas, sobrancelhas crespas, fazendo um só arco pela testa. Nada absolutamente conformado 
para galã; mas era com efeito o amante.
    "Venha ajoelhar-se com o companheiro.
    "Agora, os auxiliares..."
    Desde as cinco horas da manhã trabalhava Aristarco no processo. O interrogatório, com o 
apêndice das delações da polícia da polícia secreta e dos tímidos, comprometera apenas dez alunos.
    A chamado do diretor, foram deixando os lugares e postando-se de joelhos em seguimento dos 
principais culpados.
     "Estes são os acólitos da vergonha, os co-réus do silêncio!"
    Cândido e Tourinho, braço dobrado contra os olhos, espreitavam-se a furto, confortando-se na 
identidade da desgraça, como Francesca e Paolo no inferno.
    Prostrados os doze rapazes perante Aristarco, na passagem alongada entre as cabeceiras das 
mesas, parecia aquilo um ritual desconhecido de noivado: a espera da bênção para o casal à frente.
    Em vez da bênção chovia a cólera.
     "... Esquecem pais e irmãos, o futuro que os espera, e a vigilância inelutável de Deus!... Na face 
estanhada não lhes pegou o beijo santo das mães... caiu-lhes a vergonha como um esmalte postiço... 
Deformada a fisionomia, abatida a dignidade, agravam ainda a natureza; esquecem as leis sagradas 
do respeito à individualidade humana... E encontram colegas assaz perversos, que os favorecem, 
calando a reprovação, furtando-se a encaminhar a vingança da moralidade e a obra restauradora da 
justiça!..."
    Não posso atear toda a retórica de chamas que ali correu sobre Pentápolis. Fica uma amostra do 
enxofre.
    Isto, porém, era um começo. Conduzidos pelos inspetores, saíram os doze como uma leva de 
convictos para o gabinete do diretor, onde deviam ser literalmente seviciados, segundo a praxe da 
justiça do arbítrio.
    Consta que houve mesmo pancada de rijo. Os condenados negaram, depois. Em todo caso, era 
de efeito o simples consta, engrandecido pela refração nebulosa do boato.
    Concluída a chamada dos indiciados, a sala inteira respirou desafogo. No recreio, a rapaziada 
dispersou-se com gritos festivos.
    Franco, sobretudo, estava de um contentamento nunca visto. Casualmente em liberdade, por 
não ter havido leitura das notas, fazia da circunstância uma pirraça contra o Silvino: "Eu é que sou o 
mau", repetia andando à roda, "eu é que sou o bandalho, a peste do colégio!... O mau sou eu só!..." 
Silvino foi gradualmente perdendo a paciência. Atirou-se por fim ao Franco, desesperado, lançou-o à 
terra, meteu-lhe os pés. Alguns rapazes protestaram com gritos, Silvino ameaçou. Fogosos da 
exaltação desordeira do passeio da véspera, que por momentos dominara o terror do processo, 
reuniram-se em massa contra o Silvino. O inspetor salvou a força moral refugiando-se no alto da 
escada e fazendo de cima trejeitos enérgicos com a carteira e o lápis.
    À tardinha, em nome do diretor, foram convocados a castigo os cabeças do motim.
    Eu no meio. Fomos alinhados vinte e tantos no corredor que partia do refeitório. Na qualidade 
de presos políticos, vitimas de generosa sedição, não nos vexava a penitência. Uns conversavam 
gracejando, outros sentavam-se no soalho. Junto de mim ficava um armário dos aparelhos escolares, 
revestindo-se a vidraça de uma tela protetora de metal. Através do arame, na última luz vespertina, eu 


[Linha 3450 de 4767 - Parte 3 de 4]


espiava lá dentro os queridos planetas de vago brilho, como a noite encarcerada ainda.
    Por trás do armário, havia uma porta. Conversavam do outro lado, na sala das visitas, Aristarco 
e o guarda-livros. Chegavam-me palavras perdidas "... De boa família dois, um descrédito! Vão 
pensar... Expulsar não é corrigir... Isto é o menos; não há gratuitos?... Sim, sim. Quanto a mim... 
desagradável sempre riscar... borra a escrita... Em suma... mocidade..."
    Acabavam de acender a iluminação do Ateneu.
    Decididamente, era um dia nefasto. Do corredor, ouvimos enorme barulho no pátio. 
Recomeçavam as vaias. Protegidos pela noite, mostravam-se mais alvoroçados os rapazes. Era um 
tumulto indescritível, vozear de populaça em revolta, silvos, brados, injúrias, em que os gritos 
estrídulos dos pequenos destacavam-se como arestas da massa confusa de clamores.
    Os inspetores chegaram aterrados a procurar o diretor, mostrando a cara salpicada de verrugas 
vermelhas. Adivinhei. Era a revolução da goiabada! Uma velha queixa.
    A comida do Ateneu não era péssima.
    O razoável para algumas centenas de tolinhos. Possuía mesmo o condimento indispensado das 
moscas, um regalo. Mas aborrecia a impertinência insistida de certos pratos. Uma epidemia, por 
exemplo, de fígados guisados, o ano todo! Ultimamente, havia três meses, a goiabada mole de 
bananas, manufatura econômica do despenseiro.
    Aristarco empalideceu de despeito. Visava-o diretamente a desaforada insurreição. E isto no 
mesmo dia em que fizera espetáculo da justiça tremenda. Não quis, entretanto, arriscar o prestigio. 
Vimo-lo no corredor, incerto, sem sangue, mandando que voltassem os bedéis a acalmar.
    Torturava-o ainda em cima o ser ou não ser das expulsões. Expulsar... expulsar... falir talvez. O 
código, em letra gótica, na moldura preta, li estava imperioso e formal como a Lei, prescrevendo a 
desligação também contra os chefes da revolta... Moralidade, disciplina, tudo ao mesmo tempo... Era 
demais! era demais!... Entrava-lhe a justiça pelos bolsos como um desastre. O melhor a fazer era 
chimpar um murro no vidro amaldiçoado, rasgar ao vento a letra de patacoadas, aquela porqueira 
gótica de justiça!
    Quando informaram qual o motivo das assuadas, saiu-lhe um peso do coração! "Ah! Tinham 
motivo... Mas aquilo era patota do despenseiro... Pedras que lhe atirassem seria pouco... Mas não 
tinha culpa... Era indústria secreta a goiabada de bananas!..."
    A sineta, chamando à ceia, pacificou os ânimos. Espalhou-se que Aristarco rendia-se à revolta e 
ia falar.
    À mesma porta em que aparecera formidável de manhã, surgiu-nos transformado, manso, liso 
como a própria cordura e a lealdade; altivo, contudo, quanto comportava a submissão.
     "Mas por quê, meus amigos, não formularam uma representação? A representação é o motim 
reduzido à expressão ordeira e papeliforme! Qual a necessidade da representação por assuadas? Têm 
todos razão... Perdôo a todos... Mas eu sou tão enganado como os senhores... Até hoje estava 
convencido de que a goiabada era de goiaba... A verba consagrada é para a legitima de Campos... 
Nesta casa não há misérias!... Quando alguma coisa faltar, reclamem que aqui estou eu para as 
providências, vosso Mestre, vosso pai!... Legitimo cascão de Campos... Aqui têm as latas... Mais 
latas!... leiam o rótulo... Como podia eu suspeitar..."
    Enquanto o diretor falava, ia-lhe um copeiro amontoando em torno quanta lata vazia encontrou 
na copa. Grandes caixas redondas de folha, espelhantes como luas, com o letreiro em barra. Aristarco 
mirava-se nos luminosos documentos da sua inteireza. "Legitimo cascão! legitimo cascão, meus 
senhores!" garantia, tamborilando com os nós dos dedos numa tampa.
    Escangalhavam-se as pilhas fragorosamente pelo soalho, mas o montão subia, em desordem, 
cintilando reflexos amarrotados do gás. Aristarco avultava sobre as latas, como o principio salvo da 
autoridade. A justificação era completa. Mais algumas palavras azeitadas de ternura, e todo 
ressentimento cedia, e nós saudávamos o diretor, grande ali, como sempre, sobre o chamejamento do 
Flandres.



[Linha 3500 de 4767 - Parte 3 de 4]



IX


    A anistia dos revolucionários aproveitou por extensão aos execrandos réus da moralidade. Já 
frouxa a fibra dos rigores, Aristarco despediu-os do gabinete com a penitência de algumas dezenas 
de páginas de escrita e reclusão por três dias numa sala. Desprestigiava-se a Lei, salvavam-se, porém, 
muitas coisas, entre as quais o crédito do estabelecimento, que nada tinha a lucrar com o escândalo de 
um grande número de expulsões. Quanto ao encerramento dos culpados na trevosa cafua, impossível, 
que lá estava o Franco, por exigência expressa do Silvino, como causador primeiro das inqualificáveis 
perturbações da ordem no Ateneu.
    Esta resolução agradou-me sumamente. Pena seria, em verdade, que perdesse eu, logo depois 
do Bento Alves, tão desastradamente concluído na história sentimental das minhas relações, o meu 
amigo Egbert.
    Adquirira-o com a transição para as aulas secundárias, onde o encontrei com outros adiantados. 
Vizinhos de banco, compreendemo-nos, mutuamente simpáticos, como se um propósito secreto de 
coisa necessária tivesse guiado o acaso da colocação.
    Conheci pela primeira vez a amizade. A insignificância cotidiana da vida escolar em que a gente 
se aborrece é favorável ao desenvolvimento de inclinações mais sérias que as de simples conveniência 
menineira. O aborrecimento é um feitio da ociosidade, e da mãe proverbial dos vícios gera-se também 
o vicio de sentir.
    A convivência do Sanches fora apenas como o aperfeiçoamento aglutinante de um sinapismo, 
intolerável e colado, espécie de escravidão preguiçosa da inexperiência e do temor; a amizade de 
Bento Alves fora verdadeira, mas do meu lado havia apenas gratidão, preito à força, comodidade da 
sujeição voluntária, vaidade feminina de dominar pela fraqueza, todos os elementos de uma forma 
passiva de afeto, em que o dispêndio de energia é nulo, e o sentimento vive de descanso e de sono. 
Do Egbert, fui amigo. Sem mais razões, que a simpatia não se argumenta. Fazíamos os temas de 
colaboração; permutávamos significados, ninguém ficava a dever. Entretanto, eu experimentava a 
necessidade deleitosa da dedicação. Achava-me forte para querer bem e mostrar. Queimava-me o 
ardor inexplicável do desinteresse. Egbert merecia-me ternuras de irmão mais velho.
    Tinha o rosto irregular, parecia-me formoso. De origem inglesa, tinha os cabelos castanhos 
entremeados de louro, uma alteração exótica na pronúncia, olhos azuis de estrias cinzentas, oblíquos, 
pálpebras negligentes, quase a fechar, que se rasgavam, entretanto, a momentos de conversa, em 
desenho gracioso e largo.
    Vizinhos ao dormitório, eu, deitado, esperava que ele dormisse para vê-lo dormir e acordava 
mais cedo para vê-lo acordar. Tudo que nos pertencia, era comum. Eu por mim positivamente 
adorava-o e o julgava perfeito. Era elegante, destro, trabalhador, generoso. Eu admirava-o, desde o 
coração, até a cor da pele e à correção das formas. Nadava como as toninhas. A água azul fugia-lhe 
diante em marulho, ou subia-lhe aos ombros banhando de um lustre de marfim polido a brancura do 
corpo. Dizia as lições com calma, dificilmente às vezes, embaraçado por aspirações ansiosas de 
asfixia. Eu mais o prezava nos acessos doentios da angustia. Sonhava que ele tinha morrido, que 
deixara bruscamente o Ateneu; o sonho despertava-me em susto, e eu, com alívio, avistava-o 
tranqüilo, na cama próxima, uma das mãos sob a face, compassando a respiração ciciante. No recreio, 
éramos inseparáveis, complementares como duas condições recíprocas de existência. Eu lamentava 
que uma ocorrência terrível não viesse de qualquer modo ameaçar o amigo, para fazer valer a coragem 
do sacrifício, trocar-me por ele no perigo, perder-me por uma pessoa de quem nada absolutamente 
desejava. Vinham-me reminiscências dos exemplos históricos de amizade; a comparação pagava 
bem.
    No campo dos exercícios, à tarde, passeávamos juntos, voltas sem fim, em palestra sem assunto, 
por frases soltas, estações de borboleta sobre as doçuras de um bem-estar mútuo, inexprimível. 


[Linha 3550 de 4767 - Parte 3 de 4]


Falávamos baixo, bondosamente, como temendo espantar com a entonação mais alta, mais áspera, o 
favor de um gênio benigno que estendia sobre nós a amplidão invisível das asas. Amor unus erat.
    Entrávamos pelo gramal. Como ia longe o burburinho de alegria vulgar dos companheiros! Nós 
dois sós! Sentávamo-nos à relva. Eu descansando a cabeça aos joelhos dele, ou ele aos meus. 
Calados, arrancávamos espiguilhas à grama. O prado era imenso, os extremos escapavam já na 
primeira solução de crepúsculo. Olhávamos para cima, para o céu. Que céus de transparência e de luz! 
Ao alto, ao alto, demorava-se ainda, em cauda de ouro, uma lembrança de sol. A cúpula funda 
descortinava-se para as montanhas, diluição vasta, tenuíssima de arco-íris. Brandos reflexos de 
chama; depois, o belo azul de pano, depois a degeneração dos matizes para a melancolia noturna, 
prenunciada pela última zona de roxo doloroso. Quem nos dera ser aquelas aves, duas, que 
avistávamos na altura, amigas, declinando o vôo para o ocaso, destino feliz da luz, em pleno dia 
ainda, quando na terra iam por tudo as sombras!
    Outras vezes, subíamos ao duplo trapézio. Embalávamo-nos primeiro brando, afrontando a 
carícia rápida do ar. Pouco a pouco aumentava o balanço e arriscávamos loucuras de arremesso, 
assustando o Ateneu, levados em vertigem, distendidos os braços, pés para frente, cabeça para baixo, 
cabelos desfeitos, ébrios de perigos, ditosos se as cordas rompessem e acabássemos os dois, ali, como 
uma só vida, no mesmo arranco.
    Líamos muito em companhia. Páginas que não terminavam, de leituras delicadas, fecundas em 
cisma: Robinson Crusoé, a solidão e a indústria humana; Paulo e Virgínia, a solidão e o sentimento. 
Construíamos risonhas hipóteses: que faria um de nós, vendo-se nos aparos de uma ilha deserta?
    - Eu, por mim, iniciava logo uma furiosa propaganda a favor da imigração e ia clamar às praias, 
até que me ouvisse o mundo.
    - Eu faria coisa melhor: decretava preventivamente o casamento obrigatório e punha-me a 
esperar pelo tempo.
    A pastoral de Bernardin de Saint-Pierre foi principalmente o nosso enlevo. Parecia-nos ter o 
poema no coração. A baia do Túmulo, de águas profundas e sombrias, festejada apenas algumas 
horas pelo sol a prumo, em suave tristeza sempre; ao longe, por uma bocaina, a fachada, à vista, branca, da igreja rústica de Pamplemousses.


CONTINUE A LEITURA NA PARTE 4 DE 4 NO LINK ABAIXO:

O Ateneu - Parte 4 de 4 - Raul Pompéia
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O Ateneu - Parte 1 de 4 - Raul Pompéia
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O Ateneu - Parte 2 de 4 - Raul Pompéia
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O Ateneu - Parte 3 de 4 - Raul Pompéia
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O Ateneu - Parte 4 de 4 - Raul Pompéia
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