quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Dom Casmurro - P1de4 - Machado de Assis


Dom Casmurro - P1de4 - Machado de Assis

Dom Casmurro  - Machado de Assis



Publicado pela primeira vez em 1899, "Dom Casmurro" é uma das grandes obras de Machado de Assis e confirma o olhar certeiro e crítico que o autor estendia sobre toda a sociedade brasileira. Também a temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu.


Resumo
O romance inicia-se numa situação posterior a todos os seus acontecimentos. Bento Santiago, já um homem de idade, conta ao leitor como recebeu a alcunha de Dom Casmurro. A expressão fora inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de seus versos. Como Bento cochilara durante a leitura, o rapaz ficou chateado e começou a chamá-lo daquela forma.


CAPÍTULO PRIMEIRO / DO TÍTULO 

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse osversos no bolso. 

-- Continue, disse eu acordando. 

-- Já acabei, murmurou ele. 

-- São muito bonitos. 

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte 
entrou a
dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos 
reclusos
e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, 
e
eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você."--"Vou para
Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar 
uns
quinze dias comigo."--"Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui 
na
cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça." 

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem
calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também 
não
achei melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta 
do trem
ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. 
livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. 

CAPÍTULO II/ DO LIVRO 

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na 


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mão. 

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular 
que
me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia. há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que 
me criei
na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor 
e
pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao 
fundo,
as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas 
de
flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos blocos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras 
das
estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não
alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; 
vinha do
decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O 
mais é
também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha 
e
mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, 
que é
ruidosa. 

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui
recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, 
vá um
homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está 
é, mal
comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como 
se diz
nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os 
estranhos,
como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos 
foram
estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase 
todas
crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os
dicionários, e tal freqüência é cansativa. 

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior, é outra cousa a certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me 
despida
de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, 
conservo
alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é 
gasto
em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal. 

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro.


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Jurisprudência. filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer 
uma
"História dos Subúrbios" menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos relativas à cidade; era obra
modesta, mas exigia documentos e datas como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas
paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, 
pegasse da
pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, 
não o
do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?... 

Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, 
grande
César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências 
que me
vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a
evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas 
aquela
nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo. 

CAPÍTULO III/ A DENÚNCIA 

Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de
Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só 
para
agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857. 

--D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode 
haver
uma dificuldade. 

--Que dificuldade? 

--Uma grande dificuldade. 

Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no
corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua. 

--A gente do Pádua? 

--Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande 
metido
nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que 
lutar
para separá-los. 

--Não acho. Metidos nos cantos? 

--É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma 
desmiolada; o pai
faz que não vê; tomara ele que as cousas corressem de maneira, que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em 


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tais
cálculos, parece-lhe que todos têm a alma candida... 

--Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho 
mal
tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dous criançolas. Não se esqueça que foram criados 
juntos,
desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta cousa; daí vieram as nossas 
relações. Pois
eu hei de crer?. . . Mano Cosme, você que acha? Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido em vulgar, 
queria
dizer: "São imaginações do José Dias os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?" 

--Sim, creio que o senhor está enganado. 

--Pode ser minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar... 

--Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes. 

--Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os 
desejos de
sua mãe e depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o 
Padre
Feijó governou o Império... 

-- Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos. 

--Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande 
papel
no Brasil. 

--Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor 
que
não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre? 

-- É promessa, há de cumprir-se. 

--Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei... Creio que, bem pensado... Você que acha, prima
Justina? 

-- Eu? 

--Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme- Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa 
de
tantos anos... Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta pois isto é cousa de lágrimas? 

Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio,
durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que 
tio
Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Glória! Prima Glória!" José Dias desculpava-se: "Se soubesse, 


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não teria
falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo... " 

CAPÍTULO IV / UM DEVER AMARÍSSIMO! 

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a 
prolongar as
frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com 
as
suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de
Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, 
com um
arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia 
nele
uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. 
Levantou-se
com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado se era dos preguiçosos, mas um vagar calculado e 
deduzido,
um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo! 

CAPÍTULO V / O AGREGADO 

Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e 
lépido nos
movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem 
vontade,
mas comunicativo, a tal ponto ás bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam 
rir
nele. Nos lances graves, gravíssimo. 

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. 
Um dia
apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de 
febres; José
Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali 
vivendo,
com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre. 

--Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco. 

--Voltarei daqui a três meses. 

Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. 
Quando meu
pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da 
chácara.
Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se 
estar
calado, suspirou e acabou confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da nova 
escola, e


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não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais doentes. 

--Mas, você curou das outras vezes. 

--Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios indicados nos livros. Eles, sim, eles, abaixo de
Deus. Eu era um charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é 
a
verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo. 

Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e necessário;
dava-se por falta dele, como de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, 
disseram-me;
não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele deixasse o quarto da chácara; ao sétimo 
dia. depois
da missa, ele foi despedir-se dela. 

--Fique, José Dias. 

--Obedeço, minha senhora. 

Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as 
e
pendurou-as no quarto, por cima da cama. "Esta é a melhor apólice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa
autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não 
direi
ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham 
antes do
cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, 
ele
trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o
bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos 
pólos e
de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria 
voltado
para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo. 

--Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia. 

--Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração. 

E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias 
agradeceu
de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a 
cópia
de papéis de autos. 

CAPÍTULO VI / TIO COSME 

Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três 
viúvos.


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A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia noforo: ia comendo. Tinha o escritório na antiga Rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime.

José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no 
fim.
Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser. sorria de persuasão. 

Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era 
vê-lo
montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à
cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo - a isto seguia-se um minuto de descanso ou
reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. 
Enfim,
após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta 
vez
caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio 
Cosme
acomodava as carnes, e a besta partia a trote. 

Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dous anos) e 
apesar dos
costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em 
cima da
besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar 
desesperadamente:
"Mamãe! mamãe!" Ela acudiu pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, pegou-me, afagou-me, enquanto 
o irmão
perguntava: 

--Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa? 

--Não está acostumado. 

--Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não 
sendo
padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, mana Glória. 

--Pois que se queixe; tenho medo. 

--Medo! Ora, medo! 

A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia
montar. "Agora é que ele vai namorar deveras", disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio 
Cosme.
Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, 
além
de partidário exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de 
idéias


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públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou 
jogava.
Uma ou outra vez dizia pilhérias. 

CAPÍTULO VII / D. GLÓRIA 

Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos 
de
idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a 
fazendola
e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e 
deixou-se
estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, 
descendente
de outra paulista, a família Fernandes. 

Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de 
idade.
Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse 
preservá-la da
ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e
abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de
tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhas. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, 
a um
lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite. 

Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas 
ainda dá
idéia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato 
mostra uns
olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O 
pescoço sai
de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha 
mãe
mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao 
marido.
O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no 
bilhete
comprado de sociedade. 

Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de 
má a
boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dous 
bem
casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho
provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a
boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou 
toda
sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me 
quer..."


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Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois 
da
morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes
tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade. 

CAPÍTULO VIII / E TEMPO 

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho 
da rua
em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e 
vestir das
pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia 
começar a
minha ópera. "A vida é uma ópera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia 
a
definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um Capítulo. 

CAPÍTULO IX / A ÓPERA 

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso é que me faz mal", acrescentava. Sempre que uma 
companhia
nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia 
mais
uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando andava, apesar de 
velho,
parecia cortejar uma princesa de Babilônia. As vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso 
que ele
ou tanto - vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de 
muito
Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera, como uma 
viagem
de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou: 

--A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos
comprimirás, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos 
mesmos
comprimirás. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente... 

--Mas, meu caro Marcolini... 

--Quê... 

E depois, de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir. 

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival 
de
Miguel, Raiael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também 
que a
música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente 
trágico.


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Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais 
nada, se
Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio 
da
sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os 
outros, e
acaso para reconciliar-se com o céu,--compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno. 

--Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e 
se a
achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés... 

--Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada. 

--Mas, Senhor... 

--Nada! nada! 

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera 
fosse
executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as 
partes,
primárias e comprimárias, coros e bailarinos. 

--Ouvi agora alguns ensaios! 

--Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de 
autor. 

Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga 
teriam
evitado com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que 
nisso
mesmo está a além da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Aden, a ária de Abel, os coros 
da
guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos 
cansam à
força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por 
um
modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais. 

Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas 
rudezas e
tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas
desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao
pensamento sublime do poeta. Já não dizem c mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a 
partitura
corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é 
absolutamente
diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar 


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as
Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles 
que, ao
tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a 
afirmar
que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele 
próprio o
autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário. 

--Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele
demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos 
autorais, que
não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos são os chamados, poucos ao escolhidos". 
Deus
recebe eu ouro, Satanás em papel. 

--Tem graça... 

--Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à
graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia. quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de 
haver
algum, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No 
princípio
era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? 
Também
não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera... 

CAPÍTULO X / ACEITO A TEORIA 

Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que 
são, em
resumo, tenores desempregados. 

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, 
mas
porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo tecnicismo, depois um trio, depois um quatro... Mas não
adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro 
leitor,
foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou. 

CAPÍTULO XI / A PROMESSA 

Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber 
de
lágrimas nem da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e 
a
ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos. 

Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se 
com


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Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não 
disse
nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz, contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola, mas 
enviuvou
antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou 
testemunhas
da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde 
possível,
fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele Padre Cabral, velho amigo do tio Cose, que ia lá 
jogar
às noites. 

Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe esperou que os anos viessem vindo.
Entretanto ia-me afeiçoando à idéia da Igreja; brincos de criança, livros devotos. imagens de santos, conversações de 
casa,
tudo convergia para o altar quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse 
no
padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa,--um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia 
que
missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o 
ritual, no
sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos assim, era muito
comum ouvir à minha vizinha: "Hoje há missa?" Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia 
pedir
hóstia por outro nome Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos as cerimônias.
Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer três vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do
sacristão. Não bebíamos vinho nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do sacrifício. 

Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser negócio findo. Quinze anos, não 
havendo
vocação, podiam antes o seminário do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como 
alma
perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito. 

CAPÍTULO XII / NA VARANDA 

Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca fora. Não me
atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para 
amparar-me,
e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias: 

"Sempre juntos..." 

"Em segredinhos..." 

"Se eles pegam de namoro..." 

Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à direita ou à esquerda, segundo eu ia 
ou
vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo 


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me
dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por mim, sorrindo, um ar 
de
riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas; 

"Em segredinhos..." 

"Sempre juntos..." 

"Se eles pegam de namoro..." 

Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de 
quinze
anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze, ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro 
ofício,
nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros.
Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estilo, toda a gente viva do ar era da mesma opinião. 

Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada 
entre
nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do 
colégio, é
certo que não estabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa.
Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma 
flor -
outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer 
que
sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos 
dela, dizia
que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de 
desengano e
melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis - mas eu retorquia 
chamando-lhe
maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara 
comigo, e
eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então que os anjos 
vinham
perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos 
andávamos
unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não 
passavam da
simples repetição do dia. alguma frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, 
dizendo que os
dela eram mais bonitos que os meus, eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... 
Fez-se
cor de pitanga. 

Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras confidências. A emoção era doce e 
nova, mas
a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam 


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nada,
agora os sentia como sinais de alguma cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os
cuidados, o gosto de recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em 
Capitu,
e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais 
atenção
que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando 
éramos
somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é 
verdade, mas
com exclusivismo também. 

Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava 
tudo,
o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não 
valeria
mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as 
minhas
pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, 
essa
revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra 
sensação
da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a primeira. 

CAPÍTULO XIII / CAPITU 

De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé: 

E no quintal: 

--Mamãe! 

E outra vez na casa: 

--Vem cá! 

Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal 
vizinho.
Era costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, 
e
valem de si mesma, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali 
uma
porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha 
chave nem
taramela- abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente o uma 
corda.
Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro 
cor,
muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau 
debaixo do


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braço, para imitar o bengalão do Doutor João da Costa, tomava o pulso à doente e pedia-lhe que mostrasse a língua. 
surda, coitada!", exclamava Capitu. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe 
umas
sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico. 

--Capitu! 

--Mamãe! 

--Deixa de estar esburacando o muro - vem cá. 

A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há 
pouco
tão andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé 
do muro
fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se 
ao
muro, como se quisesse esconder alguma cousa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela 
veio a
mim, e perguntou-me inquieta: 

--Que é que você tem? 

--Eu? Nada. 

--Nada, não; você tem alguma cousa. 

Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com 
certeza,
pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido 
de
chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do 
tempo,
desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As
mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de 
toucador,
mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela 
mesma
dera alguns pontos. 

--Que é que você tem? repetiu. 

--Não é nada, balbuciei finalmente. 

E emendei logo. 

--É uma notícia. 

--Notícia de quê? 


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Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe faria. Se a consternasse é que 
realmente
gostava de mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar
claramente, tinha agora a vista não sei como... 

--Então? 

--Você sabe... 

Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns
riscos abertos e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu
agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o 
escrito.
Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era. 

CAPÍTULO XIV / A INSCRIÇÃO 

Tudo o que contei no fim do outro Capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rápido. Dei um 
pulo, e
antes que ela raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, e sim dispostos: 

BENTO 

CAPITOLINA 

Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... 
Confissão
de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou 
por
nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se,
fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela 
mesma
noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o
estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem 
de
mulheres. 

Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, 
e
depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de 
um
altar, sendo uma das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálix, os lábios a patena. Faltava dizer 
a
missa nova, por um latim que ninguém aprende e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrilégio, leitora 
minha
devota a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nossas 
mãos,
unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mm uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer 
cousas


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infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham... 

CAPÍTULO XV / OUTRA VOZ REPENTINA 

Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem: 

--Vocês estão jogando o siso? 

Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as mãos depressa, e ficamos 
atrapalhados.
Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escritos. 

-- Capitu! 

--Papai! 

--Não me estragues o reboco do muro. 

Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal, a ver o que era, mas já a filha tinha
começado outra cousa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto podia ser dele como da mãe - fê-lo rir, era o 
essencial.
De resto, ele chegou sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso, ou menos que duvidoso em que nos apanhou. 
Era
um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José 
Dias
lhe pôs. Ninguém lhe chamava assim lá em casa; era só o agregado. 

--Vocês estavam jogando o siso? perguntou. 

Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto: Capitu respondeu por ambos. 

--Estávamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não agüenta. 

--Quando eu cheguei à porta, não ria. 

--Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver? 

E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente sério - eu estava ainda sob a ação do 
que
trouxe, entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. 
Esta,
cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há 
cousas
que só se aprendem tarde é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que 
artificialmente
tarde. Capitu, após duas voltas, foi ter com a mãe, que continuava à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai 
encantados
dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura: 

--Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe está boa? continuou voltando-se 


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inteiramente
para mim. 

--Está. 

--Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor, mas não tenho podido, ando com
trabalhos da repartição, em casa; escrevo todas as noites que é um desespero; negócio de relatório. Você já viu o meu
gaturamo? Está ali no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver. 

Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo céu nem pela terra. Meu desejo era ir atrás 
de
Capitu e falar-lhe agora do mal que nos esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os 
passarinhos.
Tinha-os de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canários, que 
faziam
cantando um barulho de todos os diabos. Trocava pássaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no
próprio quintal, armando alçapões. Também, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente. 

CAPÍTULO VI / O ADMINISTRADOR INTERINO 

Pádua era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava 
pouco,
e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade 
dele.
Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. A primeira idéia do Pádua,
quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura 
perpétua
de família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos 
fundos da
casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a tia, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que 
lhe disse
que o melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; 
afinal,
teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi só nessa ocasião que minha 
mãe lhes
valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Pádua. Escutai; a anedota é curta. 

O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em comissão. Pádua, ou por ordem
regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta 
mudança
de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, 
atirou-se às
despesas supérfluas, deu jóias à mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos 
de
verniz. Viveu assim vinte e dous meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, 
aflito e
desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes 
que
deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a cousa 
nenhuma. 


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--Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família, tornar atrás... Já disse, mato-me! Não 
hei de
confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público? 

--Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre se que sua mulher não tem outra pessoa... e que há de
fazer? Pois um homem... Seja homem, ande. 

Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova,--ou então no 
quintal, ao
pé do poço, como se a idéia da morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava: 

--Joãozinho, você é criança? 

Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à minha mãe que lhe fizesse o favor de 
ver se lhe
salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que 
maluquice era
aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um emprego interino? Não,
senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que acharia forças 
para
cumprir a vontade de minha mãe. 

--Vontade minha, não; obrigação sua. 

--Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo. 

Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que
estragava o chapéu em cortejar a vizinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as
semanas, a ferida foi sarando Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar dos passarinhos, a 
dormir
tranqüilo as noites e as tardes, a conversa e dar notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um
domingo, na figura de - dous amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do costume; a 
ferida
sarou de todo. 

Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou s falar da administração interina, não somente sem as
saudades dos honorários, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou 
sendo a
hégira, donde ele contava para diante e para trás. 

--No tempo em que eu era administrador... 

Ou então: 

--Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, ou um dous meses antes... Ora espere; a minha 
administração
começou. É isto, mês e meio antes; foi mês e meio antes, não foi mais. 

Ou ainda: 


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--Justamente; havia já seis meses que eu administrava... 

Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o Padre Cabral, 
que
levava tudo para a Escritura, dizia que com o vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: "Não desprezes a correção 
do
Senhor; Ele fere e cura" 

CAPÍTULO XVII / OS VERMES "ELE FERE E CURA!" 

Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais 
veleidades de
escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, 
a
compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. 
Catei os
próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles. 

--Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, 
nem
escolhermos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos. 

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. 
Talvez
esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído. 

CAPÍTULO XVIII / UM PLANO 

Pai nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falávamos do seminário. Com os olhos em 
mim,
Capitu queria saber que notícia era a que me afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera. 

--Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários; não entro, é escusado teimarem comigo, não entro. 

Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se estar com as pupilas vagas e surdas, 
a
boca entreaberta, toda parada. Então eu, para dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele 
tempo
jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse 
para o
seminário. Capitu não parecia crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, 
sacudi-la,
mas faltou-me animo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que dormira comigo, 
deixava-me
agora com os braços atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras 
furiosas: 

--Beata! carola! papa-missas! 



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Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha 
explosão. É
verdade que também gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, cousa bastante a 
explicar o
despeito que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe chamasse nomes tão 
feios, e
principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou quatro vezes 
minha
mãe é que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis
defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo fosse 
ouvida
dos pais. Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a 
cabeça...
Eu, assustado, não sabia que fizesse, repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar em casa que, 
por nada
neste mundo, entraria no seminário. 

--Você? Você entra. 

--Não entro. 

--Você verá se entra ou não. 

Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não e ainda a Capitu do costume, mas quase. Estava séria, 
sem
aflição, falava baixo. Quis saber a conversação da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia 
respeito. 

--E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim. 

--Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me há de pagar. Quando eu 
for
dono d. casa, quem vai para a rua é ele; você verá; não me fica um instante Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção 
demais.
Parece até que chorou. 

--José Dias? 

--Não, mamãe. 

--Chorou por quê? 

--Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era cousa de choro... Ele chegou a mostrar-se arrependido, e 
saiu; eu
então, para não ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga! 

Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembrá-las, não me acho ridículo; a adolescência e a 
infância
não são, neste pontos ridículas; é um dos seus privilégios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na 
madureza


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e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça em ameaçar muito e não executar nada. 

Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me 
algumas
circunstâncias mais, as próprias palavras de uns e de outros, e o tom delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da
conversa, que era ela mesma, não lhe pude dar toda a significação. A tenção de Capitu estava agora particularmente 
nas
lágrimas de minha mãe; não acabava de entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que 
minha
mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga que ela, temente a Deus, não podia deixar de cumprir. Fiquei tão 
satisfeito
de ver que assim espontaneamente reparava as injúrias que lhe saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão dela 
e
apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tínhamos chegado à janela; 
um
preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou: 

--Sinhazinha, qué cocada hoje? 

--Não, respondeu Capitu. 

--Cocadinha tá boa. 

--Vá-se embora, replicou ela sem rispidez. 

--Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas. 

Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que em meio da crise, eu conservava um canto para as
cocadas, o que tanto pode ser perfeição. como imperfeição, mas o momento não é para definições tais; fiquemos em 
que a
minha amiga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contrário, o pregão 
que o
preto foi cantando, o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância: 

Chora, menina, chora 

Chora, porque não tem 

Vintém, 

a modo que lhe deixara uma impressão aborrecida. Da toada não era; ela a sabia de cor e de longe, usava repeti-la nos
nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. 
Creio
que a letra, destinada a picar a vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse: 

--Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa. 

Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não lhe disseram nada, ou só agradeceram a boa intenção. Com 
efeito, o
sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da aventura. 


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Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas 
eram só
atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos 
saltinhos.
Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do 
desejo
vago e hipotético de me mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e 
fugir;
estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria 
realmente
até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera. Tal era a feição particular do caráter da minha amiga; pelo que, 
não
admira que, combatendo os meus projetos de resistência franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação de 
empenho, da
palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podíamos contar. Rejeitou tio 
Cosme, era
um "boa-vida", se não aprovava a minha ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina 
era
melhor que ele, e melhor que os dous seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não havia de trabalhar contra 
a
Igreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação... 

--Posso confessar? 

--Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra cousa. José Dias... 

--Que tem José Dias? 

--Pode ser um bom empenho. 

--Mas se foi ele mesmo que falou... 

--Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra cousa. Ele gosta muito de você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que 
você
não tenha medo, mostre que há de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não 
é
favor. Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser elogiado, D. Glória presta-lhe atenção; mas o principal não é 
isso; é
que ele, tendo de servir a vocês falará com muito mais calor que outra pessoa. 

--Não acho, não, Capitu. 

-- Então vá para o seminário. 

-- Isso não. 

-- Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; façam que lhe digo. Dona Glória pode ser que mude de 
resolução;
se não mudar, faz-se outra cousa, mete-se então o Padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao teatro pela 


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primeira
vez há dous meses D. Glória não queria e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas ele queria ir, e fez um 
discurso,
lembra-se? 

--Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes. 

--Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos dous... Ande, peça, mande. Olhe, diga-lhe 
que
está pronto a ir estudar leis em São Paulo. 

Estremeci de prazer. S. Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado um dia. em vez da grossa parede 
espiritual e
eterna Prometi falar a José Dias nos termos propostos. Capitu repetiu, acentuando alguns como principais; e 
inquiria-me
depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas 
assim
como quem pede um copo de água a pessoa que tem obrigação de o trazer. Conto estas minúncias cias para que 
melhor se
entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no 
Gênesis,
onde se fizeram sucessivamente sete. 

CAPÍTULO XIX / SEM FALTA 

Quando voltei casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não pensasse nos termos em que falaria ao 
agregado.
Formulei o pedido de cabeça, escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na chácara, antes 
de
entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam às recomendações 
de
Capitu: "Preciso falar-lhe, sem falta. amanhã; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais lentamente 
ainda as
palavras sem falta, como para sublinhá-las. Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase ríspidas, e, 
francamente,
impróprias de um criançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras e parei. 

Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las em tom que não ofendesse. E a prova é que,
repetindo-as novamente, saíram-me quase súplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio-termo. 
"E
Capitu tem razão, pensei, a casa é minha, ele é um simples agregado... Jeitoso é, pode muito bem trabalhar por mim, e
desfazer o plano de mamãe." 

CAPÍTULO XX / MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS 

Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi para vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro 
céu
que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim: "Prometo rezar mil
padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu não vá para o seminário". 



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A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não cumpridas. A última foi de duzentos
padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu 
não
rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles
viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim 
cheguei
aos números vinte, trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina 
pela
quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão 
lá matar
a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a 
paga.
Afinal perdi-me nas contas. 

"Mil, mil", repeti comigo. 

Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a salvação ou o naufrágio da minha existência 
inteira.
Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os 
esquecimentos,
negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, é possível que estas agitações de menino te enfadem, se é 
que não
as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra 
espécie em
que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração da minha consciência moral sem deficit. 
Mandar dizer
cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Glória para ouvir uma, ir à Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me
contavam de promessas célebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro subir uma ladeira de
joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me 
outra
vez a alma... 

CAPÍTULO XXI / PRIMA JUSTINA 

Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao patamar e perguntou-me onde estivera. 

--Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? Mamãe perguntou por mim? 

--Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo. 

A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não é que prima Justina fosse de biocos, dizia 
francamente a
Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira é que me pareceu
novidade. Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha mãe, e 
também
por interesse; minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé de si, e antes parenta que estranha. 

Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quis saber se eu não esquecera os projetos 
eclesiásticos de
minha mãe, e dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo: 


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--Vida de padre é muito bonita. 

-- Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou rindo. 

--Eu gosto do que mamãe quiser. 

--Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse, há cá em casa quem lhe meta isso na 
cabeça.

--Quem é? 

--Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se importa com isso; eu também não. 

--José Dias? concluí. 

--Naturalmente. 

Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada Prima Justina completou a notícia dizendo que ainda 
naquela
tarde José Dias lembrara a minha mãe a promessa antiga. 

--Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa; mas como há de esquecer se uma 
pessoa
estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás, falando do seminário? E os discursos que ele faz, os elogios da Igreja, e que 
a
vida de padre é isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que só ele conhece, e aquela afetação... Note que é só para 
fazer
mal, porque ele é tão religioso como este lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de 
tarde
falou como você não imagina... 

--Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do meu namoro com a vizinha. 

Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra cousa que não podia dizer. Novamente me 
recomendou
que não me desse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias e não era pouco, um intrigante, um
bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse: 

--Prima Justina, a senhora era capaz de uma cousa? 

--De quê? 

--Era capaz de... Suponha que eu gostasse de ser padre... a senhora podia pedir a mamãe... 

--Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio firme na cabeça, e não há nada no mundo que a faça 
mudar
de resolução; só o tempo. Você ainda era pequenino, já ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou só
conhecidas. Lá avivar-lhe a memória, não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas também, pedir outra 
cousa,


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não peço, Se ela me consultasse bem; se ela me dissesse: "Prima Justina, você que acha?", a minha resposta era: 
"Prima
Glória, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar". É o que eu diria e direi se 
ela
me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço. 

CAPÍTULO XXII / SENSAÇÕES ALHEIAS 

Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Então, como eu
quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da próxima festa da Conceição, 
dos meus
velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela; ao contrário insinuou-me que podia vir a ser uma moça 
bonita.
Eu, que já a achava lindíssima, bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto.
Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, 
o
amor que tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavras, era 
com o
gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que devia 
iluminar-me a
cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde, na sala de visitas, se é que 
também
ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, 
pareciam
apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um 
pirralho
da minha idade e uma viúva quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os 
elogios a
Capitu, e até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não 
creio que
fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias 
uma
ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram. 

CAPÍTULO XXIII / PRAZO DADO 

--Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o lugar e diga-me. 

Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me saíra tão imperativo como eu receava, mas as 
palavras o
eram, e o não interrogar, não pedir, não hesitar, como era próprio da criança e do meu estilo habitual, certamente lhe 
deu
idéia de uma pessoa nova e de uma nova situação. Foi no corredor, quando íamos para o chá. José Dias vinha 
andando
cheio de leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e a prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os
parques saíam maiores da boca dele, os lagos tinham mais água e a "abóbada celeste" contava alguns milhares mais 
de
estrelas centelhantes. Nos diálogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas, conforme o sexo 
dos
interlocutores, e reproduziam com moderação a ternura e a cólera. 


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Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele: 

--Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir comigo, pedirei a mamãe. É dia de lição? 

--A lição foi hoje. 

--Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; afirmo desde já que é matéria grave e pura. 

--Sim, senhor. 

--Até amanhã. 

Fez-se tudo o melhor possível. Houve só uma altercarão; minha mãe achou o dia quente e não consentiu que eu fosse 
a pé;
entramos no ônibus, à porta de casa. 

--Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos à porta do Passeio Público. 

CAPÍTULO XXIV / DE MÃE E DE SERVO 

José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A primeira cousa que consegui logo que comecei a 
andar
fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo à rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, 
dos
meus sapatos, da minha higiene e da minha prosódia. Aos oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da 
desinência
exata, ele a corrigia, meio sério para dar autoridade à lição, meio risonho para obter o perdão da emenda Ajudava 
assim o
mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e história sagrada, ele 
assistia às
lições, fazia reflexões eclesiásticas, e, no fim, perguntava ao padre: "Não é verdade que o nosso jovem amigo caminha
depressa?" Chamava-me "um prodígio"; dizia a minha mãe ter conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que 
eu
excedia a todos esses, sem contar que, para a minha idade, possuía já certo número de qualidades morais sólidas. Eu, 
posto
não avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio; era um elogio. 

CAPÍTULO XXV / NO PASSEIO PÚBLICO 

Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no
caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do jardim: 

--Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano. 

--Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se lembra? 

--É verdade, mas foi tão de passagem. . . 

--Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já 


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que
falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua. 

--Mas eu andei algumas vezes... 

--Quando era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai
tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles 
olhos
que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles,
poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que 
seja
honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras 
qualidades
perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe
cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há 
dias,
dos meus sapatos acalcanhados... 

--Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrário, um dia. não há muito
tempo, disse ele a um sujeito, em minha presença, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como um
deputado nas camaras." 

José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou: 

--Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de juízos altos. E nada disso impede que ele 
seja o
que lhe digo. 

Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar. 

--Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício, disse eu depois de alguns instantes. 

--Pois que outra cousa, Bentinho? 

--Neste caso, peço-lhe um favor. 

--Um favor? Mande, ordene, que é? 

--Mamãe... 

Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José Dias tornou a perguntar o que era,
sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima 
Justina na
véspera. 

--Mamãe quê? Que é que tem mamãe? 

--Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente. 

José Tobias endireitou-se pasmado. 


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--Não posso, continuei eu, não menos pasmado que ele, não tenho jeito, não gosto da vida de padre. Estou por tudo o 
que
ela quiser, mamãe sabe que eu faço tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de
ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim. 

Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado natural mente, peremptório, como pode parecer do texto, mas 
aos
pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e tímida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava
certamente com a resistência, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão: 

--Conto com o senhor para salvar-me. 

Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a 
escolha da
proteção não se mostrou em nenhum dos músculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefação. Realmente, a 
matéria do
discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor 
único. José
Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias: 

--Mas que posso eu fazer? perguntou. 

--Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é? 
Tio
Cosme diz que o senhor é pessoa de talento... 

--São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que merecem tudo... Aí está! nunca ninguém me 
há de
ouvir dizer nada de pessoas tais, por quê? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro
perfeitíssimo Tenho conhecido famílias distintas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento 
que seu
tio acha em mim confesso que o tenho, mas é só um,--é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de 
apreço. 

--Há de ser também o de proteger os amigos, como eu. 

--Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um projeto que é, além de promessa, a 
ambição e
O sonho de longos anos. Quando pudesse, é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "José Dias, preciso meter 
Bentinho
no seminário". 

Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável que, com a indignação que 
experimentei,
rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma 
ação
valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde. 

--Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser. 


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-- Se eu quiser? Mas que outra cousa quero eu, senão servi-lo. Que desejo, senão que seja feliz, como merece? 

--Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto: para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou para S.
Paulo... 

CAPÍTULO XXVI / AS LEIS SÃO BELAS 

Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma idéia, -- uma idéia que o alegrou 
extraordinariamente.
Calou se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse: 

--É tarde, disse ele, mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a sua mãe. Não prometo vencer, mas 
lutar;
trabalharei com alma. Deveras, não quer ser padre? As leis são belas; meu querido... Pode ir a S. Paulo, a Pernambuco, 
ou
ainda mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a D. 
Glória,
mas não conte só comigo, fale também a seu tio. 

--Hei de falar. 

--Pegue-se também com Deus,-- com Deus e a Virgem Santíssima, concluiu apontando para o céu. 

O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros faziam giros, avançando ou pairando, 
e
desciam a roçar os pés, na água, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as
danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, 
emendei-me:

--Deus fará o que o senhor quiser. 

--Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua
felicidade que eu não faço outra cousa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, 
sem
desfazer na teologia que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa... 

Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, 
viaja:
Podemos ir juntos, veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. 
Glória
provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e 
cuidar
de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! as leis são belíssimas! 

--Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário? 

--Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui,
estamos a bordo! Ah! você não imagina o que é a Europa; Oh! a Europa... 



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Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa, falava dela muitas vezes, sem 
acabar de
tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com esta possibilidade de 
ir
comigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus estudos. 

--Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo! 

CAPÍTULO XXVII / AO PORTÃO 

No portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitu e no 
seminário,
tirei dous vinténs do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de 
que
eu pudesse satisfazer todos os meus desejos. 

--Sim, meu devoto! 

--Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo. 

CAPÍTULO XXVIII / NA RUA 

José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era à rua, pelo homem dobradiço e 
inquieto.
Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. 
Contava-me
o enredo de algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu aluguéis de 
casa;
para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com 
superlativos.
Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com palavras 
e
gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus. 

CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR 

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos 
os
veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu 
lugar,
trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria 
esta
idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo. 

Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu 
beijava-lhe a
mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o 
Imperador! é
o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o
Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? 


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Que
não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, 
todo
risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe 
que
me não fizesse padre, -- e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não. 

--A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina? 

--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade.. 

--Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É 
uma
bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é 
uma
grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora 
mesma
há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita 
carreira:
mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho? 

-- Mamãe querendo. 

-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda. 

Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas
atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo 
ainda:
"A medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos. 

Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão 
do
impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o 
plano e
voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros. 

CAPÍTULO XXX / O SANTÍSSlMO 

Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha 
pouca
vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das 
nossas
inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito
tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu. 

--Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é, creio que é em Santo Antônio dos Pobres.
Pare, Sr. recebedor! 

O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o ônibus parou, e o homem desceu. José 
Dias


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deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer consigo. Iríamos também acompanhar o 
Santíssimo.
Efetivamente, o sino chamava os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a 
primeira vez
que me achava em momento tão grave; obedeci, a princípio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela 
caridade do
serviço que por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas, entrou um sujeito 
esbaforido,
era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar o Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias 
fez um
gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre que lavava as mãos. 
Depois,
como Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma cousa. Pádua solicitava do sacristão 
uma das
varas do pálio. José Dias pediu uma para si. 

--Há só uma disponível, disse o sacristão. 

--Pois essa, disse José Dias. 

--Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua. 

--Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve uma tocha. 

Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão 
achou
meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua,
conhecido na paróquia, como José Dias. Assim fez, mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma vez 
que
tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, "jovem seminarista", a quem esta distinção cabia mais 
diretamente. Pádua
ficou pálido, como as tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que me conhecia de me ver ali com 
minha
mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista. 

--Ainda não, mais vai sê-lo, respondeu José Dias piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei 
zangado. 

--Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu. 

Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava acompanhar o Santíssimo Sacramento aos
moribundos levando uma tocha, mas que a última vez conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio 
vinha de
cobrir o vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio 
de
uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto 
que
cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador
regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao 
sacristão


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que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do pálio. 

Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório prontos, o sacristão de hissope e campainha nas mãos, 
saiu o
préstito à rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fiéis, que se ajoelhavam. fiquei comovido. Pádua 
roía a
tocha amargamente. 

É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho. De resto, não pude 
mirá-lo
por muito tempo, nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus dos
exércitos. Com pouco, senti-me me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado. 

A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quina ou dezesseis anos que estava chorando à porta do 
quarto.
A moça não era formosa, talvez nem tivesse graça, os cabelos caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe 
encarquilhar os
olhos. Não obstante o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a comunhão e os 
santos
óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre
criatura! A dor era comunicativa em si mesma complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e, quando 
enfim
pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me: 

--Não chore assim! 

A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu 
a boca
de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de 
uma
doçura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião tinham-me ares de um lustre 
nupcial...
Que era lustre nupcial Não sei; era alguma cousa contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova 
sensação me
dominou tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa: 

--Não ria assim! 

Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha vara; e, como já conhecia a distancia, e agora 
voltávamos
para a igreja, o que fazia a distancia menor, -- o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da 
rua, os
rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou entravam nos 
corredores e
se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova. 

Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por mim, não acabava de se consolar da tocha, da 
miserável
tocha. E contudo havia outros que também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam 
garridos, mas


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também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra. 

CAPÍTULO XXXI / AS CURIOSIDADES DE CAPITU 

Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a idéia da 
Europa,
mostrou se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial: 

-- Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando 
é
que ele disse que falaria a sua mãe? 

--Não marcou dia; prometeu que ia ver; que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus. 

Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe 
contara.
Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se 
pode
dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, 
mas a
ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se 
ainda o
não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição. 

Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um Capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e
inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os 
sete
anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda- 
por
isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois 
de
lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta 
razão
acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um velho professor amigo do pai e 
parceiro
deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão. 

--Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele. 

Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la desenhando a 
lápis um
retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da 
tela
que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram 
esbugalhados, e
os cabelos eram pequenos círculos uns sobre outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito 
aquilo de
memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento- descontai-me a idade e a simpatia. Ainda 
assim,
estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa 


[Linha 1800 de 7623 - Parte 1 de 4]


casa, velho
traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das 
ruínas,
das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de 
erudito. A
erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo. 

Um dia. Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se 
um
pouco mais em César, com exclamações em latim: 

--César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute? 

Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou 
muito
tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora 
uma
pérola do valor de seis milhões de sestércio! 

--E quanto valia cada sestércio? 

José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado: 

--É o maior homem da história! 

A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não 
usava
as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai, tinha um grande colar, um diadema e brincos. 

--São jóias viúvas, como eu, Capitu. 

-- Quando é que botou estas? 

-- Foi pelas festas da Coroação. 

--Oh! conte-me as festas da Coroação! 

Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que 
se
passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois 
daquelas
festas célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento;
disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria 
às
curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de 
minha mãe,
um dito daqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá... 

CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA 



[Linha 1850 de 7623 - Parte 1 de 4]


Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez 
ambas as
cousas, como eu. É o que contarei no outro Capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o
agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal nem esperou que eu 
lhe
perguntasse pela filha. 

--Está na sala penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto. 

Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a
barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas 
janelas. Se
não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só 
lhe
ouvi esta pergunta: 

--Há alguma cousa? 

--Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite? 

--Eu bem. José Dias ainda não falou? 

--Parece que não. 

-- Mas então quando fala? 

--Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, 
um
toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita... 

-- Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já 
nem
sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá
alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho. 

--Teimo- hoje mesmo ele há de falar. 

--Você jura? 

--Juro. Deixe ver os olhos, Capitu. 

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que 
era
obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me 
perguntava o
que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da
contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, 
com
os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, 
com


[Linha 1900 de 7623 - Parte 1 de 4]


tal expressão que... 

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. 
Não me
acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? 
Vá, de
ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que... 



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