sábado, 21 de outubro de 2017

Os Bruzundangas - Parte 1 de 4 - Lima Barreto


Os Bruzundangas - Parte 1 de 4 - Lima Barreto

Os Bruzundangas - Lima Barreto


Pode-se dizer que um escritor duplamente injustiçado no Brasil é Lima Barreto. Isso porque, na sua época, ser pobre e mulato, além de escrever com linguagem mais próxima do homem comum, foram elementos que o impediram de ter o reconhecimento merecido por sua obra (vale destacar que seu nome foi negado duas vezes para a Academia Brasileira de Letras); já no nosso tempo, temos o cruel fator vestibular, que muitas vezes relega excelentes autores a uma mera lista de características a serem memorizadas, retirando todo o brilho de seus escritos. Pois o objetivo deste texto é justamente reabilitar um pouco de Lima Barreto para o público, mostrando a graça e a atualidade de sua escrita. Os Bruzundangas, compilada e publicada postumamente em 1923.



        PREFÁCIO

Hais tous maux où  qu'ils soient,
très doux Fils.
          Joinville. São Luís.

Na Arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos, há um 
capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: "Como os maiores ladrões 
são os que têm por oficio livrar-nos de outros ladrões".
Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro, achei 
verdadeira a cousa e boa para justificar a publicação destas despretensiosas "Notas".
A "Bruzundanga" fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores 
males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é, portanto, como a dos "maiores" da 
Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores.
Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros de Estado que são 
simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente no peso da carne-seca, enquanto 
a Bruzundanga os tem que se ocupam unicamente, no seu ofício de ministro, de encarecerem o 
açúcar no mercado interno, conseguindo isto com o vendê-lo abaixo do preço da usina aos 
estrangeiros. Lá, chama-se a isto prover necessidades públicas; aqui, não sei que nome teria...
E semelhante ministro daqueles "maiores" de que a Arte nos fala, destinados a 
ensinar-nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de mercearias ministeriais.
Não contente com ter dessas cousas, a Bruzundanga possui outras muitas que 
desejava enumerar todas, pois todas elas são dignas de apreço e portadoras de ensinamentos 
proveitosos.
Como não poderíamos aproveitar aquele caso de um doutor da Bruzundanga, ele 
mesmo açambarcador de cebolas, que vai para uma comissão, nomeada para estudar as causas 
da carestia da vida, e propõe que se adotem leis contra os estancadores de mercadorias?
É que este doutor dos "maiores" de que nos fala o célebre livrinho sabia 
perfeitamente que não estancava e tinha o hábito de reservas mentais. Não açambarcava, mas 
"aliviava" logo uma grande porção de mercadorias para o estrangeiro, por qualquer cousa, de 
modo que... Le pauvre homme! Podia até iludir o nosso pobre Peckmann!
Com este exemplo, os menores daqui poderão ser denunciados por este grandalhão 
de lá, tão generoso e desinteressado, e o nosso povo poderá livrar-se deles.
Conheci na Bruzunganga um rapaz (creio que está nas "Notas"), de rabona de sarja e 
ares de familiar do Santo Ofício, mas tresandando a Comte, senão a anticlericalismo, que, de 
uma hora para a outra, se fez reitor do Asilo de Enjeitados, apandilhado com padres e frades, 
depois de ter arranjado um rico casamento eclesiástico, a fim de ver se, com o apoio da sotaina 
e do solidéu, se fazia ministro ou mesmo mandachuva da República. Que "maior" não acham?
E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e seu conselheiro, 
se transformou em açougueiro para vender carne aos vizinhos a dez mil-réis de mel coado, 
graças às isenções que obteve com o prestígio do seu nome, dos seus amigos, da sua família e 
das suas antigas posições, enquanto os seus patrícios pagavam-lhe o dobro?
Quantos exemplos de lá, bem grandes, nos irão precaver contra os pequeninos de 


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cá... A Arte fala a verdade...
Outra cousa curiosa da Bruzunganga, das grandes, das extraordinárias, é a sua 
"Defesa Nacional".
Lá, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisição de armamentos, 
munições, equipamentos, adestramento de tropas, etc., mas os doges do Kaphet (vide texto) 
entenderam que não; que era dar-lhes dinheiro, para elevar artificialmente o preço de sua 
especiaria. De que modo? Retendo o produto, proibindo-lhe a exportação desde certo limite, 
conquanto se houvessem tenazmente oposto a que semelhante medida fosse tomada no que 
toca às utilidades indispensáveis a nossa vida: cereais, carnes, algodão, açúcar, etc.
É preciso notar que tais utilidades, como já fiz notar, iam para o estrangeiro por 
metade do preço, menos até.
Aprendamos por aí a conhecer os nossos "menores".
Poderia muito bem falar de outros grossos casos de li, capazes de nos livrar doa tais 
pequenos daqui; mas, para quê?
As páginas que se seguem vão rever-los e eu me dispenso de narrá-los neste curto 
prefácio, Pobre terra da Bruzundanga! Velha, na sua maior parte, como o planeta, toda a sua 
missão tem sido criar a vida e a fecundidade para os outros, pois nunca os que nela nasceram, 
as que nela viveram, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!
Ainda hoje, quando o geólogo encontra nela um queixal de Magatherium ou um 
fêmur de Propithecus tem vontade de oferecer à Minerva uma hecatombe de bois brancos!
Vivos, os bona são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se têm grandes ideais; 
mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios da Bruzunganga os levem para fecundar a 
terra dos outros, lá embaixo, muito longe...
Tudo nela é caprichoso, e vário e irregular. Aqui terreno fértil, úbere; acolá, bem 
perto, estéril, arenos.
Se a jusante sobra cal, falta água; se há para montante, falta cal...
As suas florestas são caprichosas também; as essências não se associam. Vivem 
orgulhosamente isoladas, tornando-lhes penosa a exploração. Aqui, está uma espécie e outra 
semelhante só sé encontrará mais além, distante...
Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio da sua 
antiguidade: caduquece!
Contudo, e talvez por isso mesmo, os seus costumes e hábitos podem servir-nos de 
ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: "os maiores ladrões são os que têm por 
ofício livrar-nos de outros ladrões".
Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, 
livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.

         LIMA BARRETO

     Todos os Santos, 2-9-17.

Capítulo especial

Os samoiedas


Vazios estais de Cristo, vós que vos justificais pela lei; da graça tendes caído.

  SÃO PAULO aos Gálatas



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QUERIA evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. E um 
capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado.
Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de 
duas cousas primordiais : idéias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse 
povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a 
língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas 
aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui 
entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente 
da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por 
ter feição antiga de dous séculos ou três.
Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por 
todos que não lhe entenderam o escrito.
Lembrei-me, porém, que as minhas noticias daquela distante república não seriam 
completas, se não desse algumas informações sobre as suas letras; e resolvi vencer a hesitação 
imediatamente, como agora venço.
A Bruzundanga não podia deixar de tê-las, pois todo o povo, tribo, clã, todo o 
agregado humano, enfim, tem a sua literatura e o estudo dessas literaturas muito tem 
contribuído para nós nos conhecermos a nós mesmos, melhor nos compreendermos e mais 
perfeitamente nos ligarmos em sociedade, em humanidade, afinal.
Seria uma falha minha nada dizer eu sobre as belas-letras da Bruzundanga que as tem 
como todos os países, a não ser o nosso que, conforme sentenciou a Gazeta de Notícias, não 
merece tê-las, pois o literato não tem função social na nossa sociedade, provocando tal opinião 
o protesto de um sociólogo inesperado. Devem estar lembrados deste episódio -- creio eu. 
Continuemos, porém, na Bruzundanga.
Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas, fábulas, etc.; mas 
todo esse folk-lore não tem sido coligido e escrito, de modo que, dele, pouco lhes posso 
comunicar.
Porém, um canto popular que me foi narrado com todo o sabor da ingenuidade e dos 
modismos peculiares ao povo, posso reproduzir aqui, embora a reprodução não guarde mais 
aquele encanto de frase simples e imagens familiares das anônimas narrações das coletividades 
humanas.
Na versão dos populares da curiosa república, o conto se intitula -- "O GENERAL E 
O DIABO" -- havendo uma variante sob a alcunha de -- "O PADRE E O DIABO". Como não 
tivesse de cor nem as palavras da versão mais geral, nem as da variante, aproveitei o tema, 
alguma cousa do corpo da "história" e narro-a aqui, certamente muito desfigurada, sob a 
crisma de:

    SUA EXCELÊNCIA    
  
O ministro saiu do baile da embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas 
estivera a sonhar com aquele momento, Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando 
bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. 
Por isso entrara no coupé depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha 
cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.
Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo 
das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a 
deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral 
de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes 
dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das coisas, 


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acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e 
unicamente, seria capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele 
impunham...
E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em 
caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer, Lembrou-se do seu discurso de 
ainda agora:
"Na vida das sociedades, como na dos indivíduos"...
Que maravilha! Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele 
trecho? Recordou-se dele por inteiro:
"Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e  Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis 
e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos 
costumes"...
O olhar, muito brilhante, cheio de admiração -- o olhar do leader da oposição -- foi o 
mais seguro penhor do efeito da frase...
E quando terminou! Oh!
"Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!"
A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi 
recebido.
O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, 
pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.
O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de 
fogo; depois sumiram-se.
O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em 
vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde 
eles pousassem.
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora, o mesmo 
minuto da sua saída da festa.
-- Cocheiro, onde vamos?
Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.
Gritou ao cocheiro:
-- Onde vamos? Miserável, onde me levas?
Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de 
forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a 
Deus, ainda não se haviam derretido. O Leão da Birmânia, o Dragão da China, o Lingão da 
Índia estavam ali, entre todas as outras, intactas.
-- Cocheiro, onde me levas?
Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo 
longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel!
-- Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás!
O carro voava e o ministro continuava a vociferar:
-- Miserável! Traidor! Pára! Pára!
Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos 
fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um 
brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.
O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, 
despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças...
Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e 
seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.
Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles "libré" e uma 


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grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde, saíra 
triunfalmente, não havia minutos.
Nas proximidades um coupé estacionava.
Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.
Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) 
descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas 
grã-cruzes...
Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, 
abjectamente, como se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:
-- Vossa Excelência quer o carro?
Como esta há, na Bruzundanga, muitas outras "histórias" que correm de boca em 
boca e se transmitem de pai a filho.
Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de encomenda, 
não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos 
eles quase não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de conferências, 
poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em 
batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, 
as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasia de menino, coletâneas de 
ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à 
razão de quinze ou vinte mil-réis o volume.
Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando 
empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia.
São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por "expoentes" e não há moça rica que não 
queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros 
afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar.
O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida 
por "Escola Samoieda".
Não que todo o escritor  bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os 
mais pretenciosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem 
graduados, diplomados nela. Digo -- "caracteriza", porque, como os senhores verão no correr 
destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir 
ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de 
querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) 
vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um 
grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é 
exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é 
próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do uniforme. Assim também são os 
literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, 
com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quem a 
elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e 
se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver, contentam-se com as aparências 
literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em 
outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro 
talento poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos com 
pelotiquices e passes de mágica intelectuais.
Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pude estudar um tanto 
demoradamente os princípios teóricos dessa escola e julgo estar habilitado a lhes dar um 
resumo de suas regras poéticas e da sua estética.
Esses poetas da Bruzundanga, para dar uma origem altissonante e misteriosa à sua 
escola, sustentam que ela nasceu do poema de um príncipe samoieda, que viveu nas margens 


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do Ártico, nas proximidades do Óbi ou do Lena, na Sibéria, um original que se alimentava da 
carne de mamutes conservados há centenas de séculos nas geleiras daquelas regiões.
Essa espécie de alimentação do longínquo príncipe poeta dava aos olhos de todos 
eles, singular prestígio aos seus versos e aos do fundador, embora pouco eles os conhecessem.
O príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema Parikáithont Vakochan, o 
que quer dizer no nosso calão -- O silêncio das renas no campo de gelo.
Tuque-Tuque Fit-Fit era descrito pelos "samoiedas" da Bruzundanga como sendo 
uma beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões árticas.
Tudo isto era fantástico, mas graças à credulidade dos sábios do país, só um ou outro 
desalmado tinha a coragem de contestar tais lendas.
Como todos nós sabemos, a raça samoieda é de estatura baixa, pouco menos que a 
dos lapões, cabelos longos, duros e negros de jade, vivendo da carne de renas, de urso branco, 
quando a felicidade lhe fornece um. Tais homens andam em trenós e fazem kayacs de peles de 
renas ou focas que eles empregam para capturar estas últimas.
As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus ídolos, manipansos hediondos, 
tocos de pau besuntados de pinturas incoerentes. Vestem-se, os samoiedas, com peles de renas 
e outros animais hiperbóreos.
Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguir as teorias da 
literatura do Oceano Ártico, não são os samoiedas assim, como o contam os mais autorizados 
viajantes; mas sim os mais belos espécimens da raça humana, possuindo uma civilização digna 
da Grécia antiga.
Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga...            
Em geral, os vates bruzundanguenses adeptos da tal escola samoieda, como os 
senhores vêem, não primam pela ilustração; e, quando se conteste no tocante à beleza de tais 
esquimós, respondem categoricamente que a devem ter extraordinária, pois quanto mais fria é 
a região, mais belos são os tipos, mais altos, mais louros, e os samoiedas vivem em zona 
frigidíssima.
Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por idéias feitas, receitas de 
julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las 
por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas 
pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra cabeça.
Atribuem, sem base alguma, a esse tal Tuque-Tuque a fundação da escola, apesar de 
nunca lhe terem lido as poesias nem a sua arte poética.
Sempre procurei saber por que se enfeitavam com esse exótico avoengo; as razões 
psicológicas, eu as encontrei na vaidade deles, no seu desejo de disfarçar a sua inópia poética 
com um padrinho esquisito e misterioso; mas o núcleo da lenda, o grãozinho de areia em torno 
do qual se concretizava o mito ártico da escola, só ultimamente pude encontrar.
Consegui descobrir entre os livros de um inglês meu amigo, Senhor Parsons, um 
volume do Senhor H. T. Switbilter, de Bristol (Inglaterra) -- Literature of the Stingy Peoples; e 
encontrei nele alguns versos samoiedas. São anônimos, mas o estudioso de Bristol declara que 
os recolheu da boca de um certo Tuck-Tuck, samoieda de nação, que ele conheceu em 1867, 
quando foi encarregado pela Sociedade Paleontológica de Bristol de descobrir na embocadura 
dos grandes rios da Sibéria monstros antediluvianos conservados no gelo, como escaparam de 
encontrar, quase intactos, o naturalista Pallas, nos fins do século XVIII, e o viajante Adams, 
em 1806. A história do tal príncipe Tuque-Tuque alimentar-se de carne de elefantes fósseis, 
parece ter origem no fato bem sabido de terem os cães devorado as carnes do mamute, cujo 
esqueleto Adams trouxe para o museu de São Petersburgo; e o príncipe já sabemos quem é.
O Senhor Switbilter pouco acrescenta a algumas poesias que publica; e as que estão 
no volume, traduzidas, são por demais monstruosas, sempre com um mesmo pensamento 
denunciando uma concepção estreita da vida e do universo, muito explicável em bárbaros 


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glaciais.
O viajante inglês que conhece o samoieda, entretanto, diz aqui e ali, que elas são 
enfáticas, sem quantidade de sentimento ou um acento musical agradável e individual, 
descaindo quase sempre para a melopéia ou o "tantã" ignaro, quando não alternam uma cousa e 
outra.
Mas não foi no livro do Senhor Switbilter que os augustos poetas da Bruzundanga 
foram encontrar as bases da sua escola. Eles não conhecem esse autor, pois nunca os vi citá-lo.
Eles, os "samoiedas" da Bruzundanga, encontraram o mestre nos escritos de um tal 
Chamat ou Chalat, um aventureiro francês que parece ter estado no país daquela gente ártica, 
aprendido um pouco da língua dela e se servido do livro do viajante inglês para defender uma 
poética que lhe viera à cabeça.
Esse Chamat ou Chalat, Flaubert, quando esteve no Egito, encontrou-o por lá, como 
médico do exército quedival; e ele se ocupava nos ócios de sua provável mendicância em rimar 
uma tragédia clássica, Abdelcáder, em cinco atos, onde  havia um  célebre verso  de que  o 
grande  romancista nunca se esqueceu. É o seguinte :

"C'est de Id par Allah! qu' Abd-Allah s'en alla".

O esculápio do Cairo insistia muito nele e esforçava-se por demonstrar que, com 
semelhante "harmonia imitativa" como os antigos chamavam, obtinha traduzir, em verso, o 
sonido do galope de cavalo.
Havia mais belezas de igual quilate e outras originalidades. Não obstante, quando 
apareceu, foi um louco sucesso de riso muito parecido com o do Tremor de terra de Lisboa, 
aquela célebre tragédia do cabeleireiro André, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, 
ao receber-lhe a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras -- "toujours des perruques", 
Senhor André.
Chalat afrontou a crítica e não podendo defender-se com os clássicos franceses, 
apelou para a poesia em língua samoieda, que conhecia um pouco por ter sido marinheiro de 
um baleeiro que naufragou nas proximidades da terra desses lapões, entre os quais passou 
alguns meses. Não desconhecia o livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião de verificar 
nos fragmentos de um seu tratado poético, citado na tradução da obra de um seu discípulo 
basco por onde os "samoiedas" da Bruzundanga estudaram a escola que verdadeiramente 
Chalat ou Chamat fundara.
O seu desafio à crítica, escudado na poética e estética das margens do glacial Ártico, 
trouxe-lhe logo uma certa notoriedade e discípulos.
Estes vieram muito naturalmente, pois, dada a indigência mental daquela espécie de 
esquimós, a sua pobreza de impressões e sensações, a sua incapacidade para as idéias gerais, os 
hinos, os cânticos, os rondós dos mesmos, citados pelo medicastro, facilitavam muito o ofício 
de fazer verso, desde que se tivesse paciência; e a facilidade seduziu muitos dos seus patrícios 
e determinou a admiração dos bardos bruzundanguenses.
Os discípulos de Chalat ou Chamat tiraram da sua obra regras infalíveis para fazer 
poetas e poesias e um certo até aplicou a teoria dos erros à sua arte poética.
A instrução do grosso dos menestréis bruzundanguenses não permitia esse apelo à 
matemática; e contentaram-se com umas regras simples que tinham na ponta da língua, como 
as beatas as rezas que não lhes passam pelo coração, e outros desenvolvimentos teóricos.
Era pois essa poética e essa estética que dominavam entre os literatos da 
Bruzundanga; era assim como o seu dogma de arte donde se originavam as suas fórmulas 
litúrgicas, o seu ritual, os seus esconjuros, enfim, o seu - culto à tal harmonia imitava, que tanto 
prezava Chalat.
Além desta deusa, havia outras divindades: o ritmo, o estilo, a nobreza das palavras, 


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a aristocracia dos assuntos e dos personagens, quando faziam romances, contos ou drama e a 
medição dos versos que exigiam fosse feita como se se tratasse da base de uma triangulação 
geodésica. Ninguém, no entanto, podia sacar-lhes da cabeça uma concepção geral e larga de 
arte ou obter o motivo deles conceberem separados da obra d'arte, esses acessórios, 
transformando-os em puros manipansos, fetiches, isolando-os, fazendo-os perder a sua função 
natural que supõe sempre a obra literária como fim. É ela, a sua concepção, a idéia anterior que 
a domina e o seu destino necessário, que unicamente regulam o emprego deles, graduam o seu 
uso, a sua necessidade, e como que ela mesma os dita.
Todos os samoiedas limitavam-se quando se tratava dos tais assuntos, a falar muito 
de um modo confuso, esotericamente, em forma e fundo, com trejeitos de feiticeiros tribais.
Não nego que houvesse entre eles alguns de valor, mas os preconceitos da escola os 
matava.
A maioria ia para ela, porque era cômoda no fundo, pois não pedia se comunicasse 
qualquer emoção, qualquer pensamento, qualquer importante revelação de nossa alma que 
interessasse outras almas; que se dissesse usando dos processos artísticos, novos ou velhos, de 
um pouco do universal que há em nós, alguma cousa do mistério do universo que o nosso 
espírito tivesse percebido e determinasse transmiti-la; enfim um julgamento, um conceito que 
pudesse influir no uso da vida, na nossa conduta e no problema do nosso destino, empregando 
os fatos simples, elementares, as imagens e os sons que por si sós não exprimiriam a idéia que 
se procura, mas que se acha com eles e se vai além por meio deles.
Isto de Hegel, de Taine, de Brunetière não era com os samoiedas; a questão deles era 
encontrar uma espécie de tabuada que lhes fizesse multiplicar a versalhada. Como as tais 
regras poéticas do suposto príncipe eram bem acessíveis à sua paciência de correcionais, 
adotaram-nas como artigos de fé, exageraram-nas até ao absurdo.
Convinham elas por ir ao encontro da sua falta de uma larga inteligência do mundo e 
do homem e facilitar-lhes uma crítica terra-à-terra de seminaristas mnemônicos.
Para mais perfeito ensinamento dos leitores vou-lhes repetir um trecho de conversa 
que ouvi entre três dos tais poetas da Bruzundanga, adeptos extremados da Escola Samoieda.
Quando cheguei, eles já estavam sentados em torno da mesa do café. Acabava eu de 
assistir uma aula de geologia na Faculdade de Ciências do país; o meu espírito vinha cheio de 
silhuetas de monstros de outras épocas geológicas. Eram ictiossauros, megatérios, mamutes; 
era do sinistro pterodáctilo que eu me lembrava; e não sei por que, quando deparei os três 
poetas samoiedas, me deu vontade de entrar no botequim e tomar parte na conversa deles.
A Bruzundanga, como sabem, fica nas zonas tropical e subtropical, mas a estética da 
escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de renas, de martas e raposas árticas.
É um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas caríssimo para os seus 
parentes literários dos trópicos.
Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística, morrem de 
fome, mas vestem-se à moda da Sibéria.
Estavam assim vestidos, naquela tarde, quente, ali naquele café da capital da 
Bruzundanga, três dos seus novos e soberbos vates; estavam ali: Kotelniji, Wolpuk e Korspikt, 
o primeiro que tinha aplicado o vernier para "medir" versos.
Abanquei-me e pude perceber que acabavam de ouvir uma poesia do poeta Worspikt. 
Tratava de lua, de iceberg, -- descobri eu por uma e outra consideração que fizeram.
Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a moção com que o 
outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno das circunvizinhanças dos pólos.
Num dado momento Kotelniji disse para Worspikt:
-- Gostei muito desse teu verso: -- "há luna loura linda leve, luna bela!"
O autor cumprimentado retrucou:            
-- Não fiz mais do que imitar Tuque-Tuque, quando encontrou aquela soberba 


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harmonia imitativa para dar idéia do luar -- "Loga Kule Kulela logalam", no seu poema 
"Kulelau".
Wolpuk, porém, objetou:
-- Julgo a tua excelente, mas teria escolhido a vogal forte "u", para basear a minha 
sugestão imitativa do luar.
-- Como? perguntou Worspikt.
Eu teria dito: Ui! "lua uma pula, tu moo! sulla nuit!"
-- Há muitas línguas nela, objetou Kotelniji.
-- Quantas mais melhor, para dar um caráter universal à poesia que deve sempre tê-lo, 
como ensina o mestre, defendeu-se Wolpuk.
-- Eu, porém, aduziu Kotelniji, conquanto permita nos outros certas licenças poéticas, 
tenho por princípio obedecer às mais duras e rígidas regras, não me afastar delas, encarcerar 
bem o meu pensamento. No meu caso, eu empregaria a vogal "a" para a harmonia em vista.
-- Mas Tuque-Tuque... fez Worspikt.
-- Ele empregou o "e" no tal verso que você citou, devido à pronunciação que essa 
letra lá tem. É um "e" molhado que evoca bem o luar deles, mas...
-- E com "a", como é? indagou Wolpuk.
-- O "a" é o espanto; seria ai o espanto do homem dos. trópicos, diante da estranheza 
do fenômeno ártico que ele não conhece e o assombra.
-- Mas Kotelniji, eu visava o luar.
-- Que tem isso? Na harmonia em "a" também entra esse fenômeno que é o 
provocador do teu espanto, causado pela sua singularidade local, e pela hirta presença do 
iceberg, branco, fantástico, que, a lua ilumina.
-- Bem, perguntou o autor da poesia; como você faria, Kotelniji?
-- Eu diria: "A lua acaba de calar a caraça parva".
-- Mas não teria nada que ver com o tema da poesia, objetou Wolpuk.
-- Como? O iceberg toma as formas mais variadas... Demais, há sempre onde 
encaixar, seja qual for a poesia, uma feliz "imitativa".
-- Você tem razão, aplaudiu Wolpuk.
Worspikt concordou também e prometeu aproveitar a maravilhosa trouvailhe do 
amigo de letras.
Kotelniji era considerado como um grande poeta "samoieda" e tinha mesmo 
estabelecido com assentimento de todos eles, as leis científicas da escola perfeita, "a 
samoieda", que ele definia como tendo por escopo não exprimir cousa alguma com relação ao 
assunto visado, ou dizer sobre ele, pomposamente, as mais vulgares banalidades.
Dentre as leia que estatuía, eu me lembro de algumas. Ei-las:
1.o -- Sendo a poesia o meio de transportar o nosso espírito do real para o ideal, deve 
ela ter como principal função provocar o sono, estado sempre profícuo ao sonho.
2.o -- A monotonia deve ser sempre procurada nas obras poéticas; no mundo, tudo é 
monótono (Tuque-Tuque).
3.o -- A beleza de um trabalho, poético não deve ressaltar desse próprio trabalho, 
independente de qualquer explicação; ela deve ser encontrada com as explicações ou 
comentários fornecidos pelo autor ou por seus íntimos.
4.o -- A composição de um poema deve sempre ser regulada pela harmonia imitativa 
em geral e seus derivados.
E muitas outras de que me esqueci, mas julgo que só estas ilustram perfeitamente o 
absurdo da qualificação de leis científicas da arte. Alhos com bugalhos!
Denuncia tal denominação, de modo cabal, a sua incapacidade para grupar idéias, 
noções e imagens. Que pensaria ele de ciência? Qual era a sua concepção de arte? Será 
possível decifrar essa história de "leis científicas da arte"? Qual!


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Era assim o grande poeta samoieda.
Além de uma gramaticazinha que nós aqui chamamos de tico-tico e da arte poética 
de Chalat aumentada e explicada com uma lógica de gafanhotos, não possuía ele um acervo de 
noções gerais, de idéias, de observações, de emoções próprias e diretas do mundo, de 
julgamentos sobre as cousas, tudo isso que forma o fundo do artista e que, sob a ação de uma 
concepção geral, lhe permite fazer grupamentos ideais, originalmente, criar enfim.
A importância do vate lhe vinha de redigir A Kananga, órgão das casas de 
perfumarias, leques, luvas e receitas para doces, onde alguns rapazes, sob o seu olhar cioso, 
escreviam, para ganhar os cigarros, algumas coisas ligeiras.
O bardo samoieda tomava, entretanto, a cousa a sério, como se estivesse escrevendo 
para a Revue de Deux Mondes uma fórmula de mãe-benta; e evitava o mais possível que 
alguém tomasse pé na pueril A Kananga. Era essa a sua máxima preocupação de artista.
De todos os postiços literários, usava, e de todas as mesquinhezas da profissão, 
abusava.
Era este de fato um samoieda típico no intelectual, no moral, no físico. Tinha fama.
Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas regras, as suas 
superstições; mas não convém fazer semelhante cousa, porque bem podia acontecer que alguns 
dos meus compatriotas a quisessem seguir.
Já temos muitas bobagens e são bastantes.
Fico nisto.

 I            

I

Um grande financeiro


A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas as repúblicas 
que se prezam, além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de 
Deputados, ambos eleitos por sufrágio direto e temporários ambos, com certa diferença na 
duração do mandato: o dos senadores, mais longo; o dos deputados, mais curto.
O país vivia de expedientes, isto é, de cinqüenta em cinqüenta anos, descobria-se 
nele um produto que ficava sendo a sua riqueza. Os governos taxavam-no a mais não poder, 
de modo que os países rivais, mais parcimoniosos na decretação de impostos sobre produtos 
semelhantes, acabavam, na concorrência, por derrotar a Bruzundanga; e, assim, ela fazia 
morrer a sua riqueza, mas não sem os estertores de uma valorização duvidosa. Daí vinha que a 
grande nação vivia aos solavancos, sem estabilidade financeira e econômica; e, por isso 
mesmo, dando campo a que surgissem, a toda a hora, financeiros de todos os seus cantos e, 
sobretudo, do seu parlamento.
Naquele ano, isto há dez anos atrás, surgiu na sua Câmara um deputado que falava, 
muito em assuntos de finanças, orçamentos, impostos diretos e indiretos e outras cousas 
cabalísticas da ciência de obter dinheiro para o Estado.
A sua ciência e saber foram logo muito gabados, pois o Tesouro da Bruzundanga, 
andando quase sempre vazio, precisava desses mágicos financeiros, para não se esvaziar de 
todo.
Chamava-se o deputado -- Felixhimino Ben Karpatoso. Se era advogado, médico, 
engenheiro ou mesmo dentista, não se sabia bem; mas todos tratavam-no de doutor.
O doutor Karpatoso tinha uma erudição sólida e própria em matéria de finanças. Não 
citava Leroy-Beaulieu absolutamente. Os seus autores prediletos eram o russo-polaco Ladislau 


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Poniatwsky, o australiano Gordon O'Neill, o chinês Ma-Fi-Fu, o americano William Farthing e, 
sobretudo, o doutor Caracoles y Mientras, da Universidade de Caracas, capital da Venezuela, 
que, por ser país sempre em bancarrota, dava grande autoridade ao financista de sua principal 
universidade.
O físico do deputado era dos mais simpáticos. Tinha um ar de Gil-Blas de Santillana, 
em certas ilustrações do romance de Le Sage, com as suas barbas negras, cerradas, longas e 
sedosas, muito cuidadas e aparadas à tesoura diariamente. A tez era de um moreno espanhol; 
os cabelos, abundantes e de azeviche; os olhos, negros e brilhantes; e não largava a piteira de 
âmbar, com guarnições de ouro, onde fumegava sempre um charuto caro.
O seu saber em matéria de finanças e economia política determinava a sua constante 
escolha para relator do orçamento da receita. Era de ver como ele escrevia um substancial 
prefácio ao seu relatório. Não me recordo de todas as passagens importantes de alguns deles; 
mas, de certas, e é pena que sejam tão poucas, eu me lembro perfeitamente. Eis aqui algumas. 
Para o orçamento de 1908, o doutor Karpatoso escreveu o seguinte trecho profundo: "Os 
governos não devem pedir às populações que dirigem, em matéria de impostos, mais do que 
elas possam dar, afirma Ladislau Poniatwsky. A nossa população é em geral pobríssima e nós 
não devemos sobrecarregá-la fiscalmente". Não impediu isto que ele propusesse o aumento da 
taxa sobre o bacalhau da noruega, pretextando haver produtos similares nas costas do país.
No orçamento do ano seguinte, ainda como relator da receita, ele dizia: "É missão 
dos governos modernos, em países de fraca iniciativa individual (o nosso o é), fomentar o 
aparecimento de riquezas novas, no dizer de Gordon O'Neill. A província das Jazidas, 
segundo um sábio professor francês, é um coração de ouro sob um peito de ferro. O pico de
Ytabhira, etc.".
E lembrava à Câmara que indicasse medidas práticas para o aproveitamento do ouro 
e do ferro da província das Jazidas. A Câmara e o Senado ouviram-no e votaram algumas 
centenas de contos para uma comissão que estudasse o meio prático de aproveitar o ferro da 
rica província central. A comissão foi nomeada, montaram o escritório de pesquisas na capital, 
em lugar semelhante ao Largo da Carioca, e o pico de Ytabhira ficou intacto.
A fama do doutor Karpatoso subia e a sua elegância também. Fez uma viagem à 
Europa, para estudar o mecanismo financeiro dos países do Velho Mundo. Voltou de lá 
naturalmente mais sábio; o que, porém, ele trouxe de fato, nas malas, e foi verificado pelos 
elegantes do país, foram fatos, botas, chapéus, bengalas, dernier bateau, como dizem os smarts 
das colônias francesas da Ásia, da África, da América e da Oceania.
Arreado de novo e inteiramente europeu, o doutor Karpatoso começou a figurar nas 
secções mundanas dos jornais, e, vencendo o Senhor Mikel de Longueville, outro deputado da 
Bruzundanga, foi tido como o parlamentar mais chic do Congresso Nacional.
"A elegância do doutor Mikel de la Tour d'Auvergne é um tanto pesada; tem algo da 
solidez lusitana quando enrijou os músculos ao machado nos cepos dos açougues; a do doutor 
Ben Karpatoso é mais leve,  mais ligeira, mais nervosa. Parece ter sido obtida com o exercício 
do florete."
Tudo isto foi dito na secção elegante -- "De Cócoras" -- do Diário Mercantil, jornal 
da capital, secção redigida por escritor que tinha, em matéria de compor romances, um grande 
parentesco com aquela raposa das uvas, cuja história La Fontaine contou. "Ils sont trop verts, 
et bons pour des goujats", disse a raposa quando não pôde atingir as uvas. Lembram-se?
O elogio que o tal senhor fez aos ademanes do doutor Karpatoso tinha origem no 
boato a correr de que, muito em breve, ele seria indicado para ministro da Fazenda, e o tal 
redator da secção -- "De Cócoras" --  tinha sempre em mira descobrir os ministros futuros, 
para ulteriores serviços de sua profissão e recompensas conseqüentes.
Mikel de Bouillon é que ficou aborrecido com a cousa; mas como tinha certeza de 
sair, pelo menos, vice-presidente da Bruzundanga, abafou o azedume, encerou bem os bigodes 


[Linha 550 de 3733 - Parte 1 de 4]


e continuou a pisar os passeios das ruas centrais da capital, com uma estudada 
solenidade -- lento, erecto como um soba africano que tivesse envergado um fardão de oficial 
de marinha e se coberto com o respectivo chapéu armado, encontrados nos salvados de um 
naufrágio, em uma praia deserta. Via-se bem que Turenne Calmon era daqueles que se 
satisfazem em ser o segundo em Roma, e que segundo!
Desde que se rosnou que o doutor Karpatoso seria ministro da Fazenda do futuro 
quadriênio, a sua casa começou a encher-se. Kaipatoso era casado com uma senhora da roça, 
muito segura das suas origens nobres; ela pertencia à família dos Kilvas, cujo armorial e 
pergaminhos não tinham sido outorgados por nenhum príncipe soberano. Como Napoleão que, 
segundo dizem, na sua sagração de imperador, pôs ele mesmo a coroa na cabeça, Dona 
Hengrácia Ben Manuela Kilva tinha ela mesmo se enobrecido.
Felixhimino, como bom financeiro que era, possuía qualidades harpagonescas de 
economia e poupança, de forma que se zangava muito com aquelas despesas de chá e 
biscoutos, que era obrigado a oferecer aos visitantes. A fim de não mexer nas economias que 
fazia sobre seu subsídio teve a idéia genial de fundar uma casa de herbanário, em uma espécie 
de Rua Larga de São Joaquim da capital da República da Bruzundanga. Arranjou uma pessoa 
de confiança, que pôs à testa do negócio; e ei-lo a vender chá mineiro, alfavaca, 
"língua-de-vaca", cipó-chumbo, malícia-de-mulher, erva-cidreira, jurubeba, catinga-de-bode, 
mata-pão, erva-tostão, bicuíba, óleo de capivara, cascos de jacarés, corujas empalhadas, 
caramujos, sapos secos, jabutis, etc. Em breve, ficou sendo o principal fornecedor dos 
feiticeiros da cidade, e os lucros foram grandes, de modo que ele pôde, sem mais gravame nas 
suas finanças, sustentar o seu salão.
Mme. Hengrácia Ben Karpatoso, centro de conversa, não se cansava de gabar os 
árduos trabalhos do marido.
Certa ver, em que houvera recepção na casa do famoso deputado, quando ele já se 
tinha retirado para os aposentos do andar superior, a fim de estudar não sei o que sua mulher 
ficou na sala de visitas a conversar com algumas amigas e alguns amigos. Alguém, a um tempo 
da conversa, observou:
-- Isto vai tão mal, que não sei mesmo quem nos salvará. 
Mme. Hengrácia, tal e qual Mme. de Girardin, em certa ocasião, apontou o dedo para 
o teto e disse sacerdotalmente.
-- Ele!
Todos se entreolharam e o doutor Moscoso completou:
-- Sim: Deus!
-- Não, -- observou Dona Hengrácia. -- Ele, o Felixhimino, quando for ministro da 
Fazenda. Ele há de sê-lo em breve.
Todos concordaram. Não se cumpriu, porém, a profecia da pitonisa conjugal, pois o 
novo presidente da Bruzundanga -- Idle Bhras -- não fez Ben Karpatoso Ministro do Tesouro.
O sábio deputado continuou, porém, na sua atividade financeira, a relatar orçamentos 
com saldos, mas que sempre, ao fim do exercício, se fechavam com deficits.
Certo dia, Idle Bhras de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio e disse-lhe:
-- Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce de ano para 
ano... Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro... Espero que você me arranje um jeito 
de aumentarmos a receita. Você tem estudos sobre finanças e não será difícil para você...
A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:
-- Não há dúvidas! Vou arranjar a cousa.
Três dias após, ele tinha as idéias salvadoras: aumentava do triplo a taxa sobre o açúcar, o café, 
o querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo e o bacalhau; do 
dobro, os tecidos de algodão, os sapatos, os chapéus, os fósforos, o leite condensado, a taxa 
das latrinas, a água, a lenha, o carvão, o espírito de vinho; criava um imposto de 50% sobre as 


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passagens de trens, bondes e barcas, isentando a seda, o veludo, o champagne, etc., de 
qualquer imposto. Calculando tudo, ele obtinha trinta mil contos. Levou a cousa a Idle Bhrás 
de Grafofone e Cinema, que gabou muito o trabalho de Ben Karpatoso:
-- Tu és um Colbert e mais ainda: és o João Ben Venanko, aquele -- não sabes? -- que 
foi presidente da Câmara de Guaporé, minha terra. Ele sempre teve idéias semelhantes às tuas, 
mas não as aceitava, por isso nunca o município prosperou. Entretanto, era um pobre 
meirinho... Que financeiro!
Apresentadas as idéias de Felixhimino à Câmara, muitos deputados se insurgiram 
contra elas.
Um objetou:
-- Vossa Excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.
-- Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos, seria até um benefício, visto 
que o preço da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de 
muitos, o preço dos gêneros baixará fatalmente.
Um outro observou:
-- Vossa Excelência vai obrigar o povo a andar nu.
-- Não apoiado. O vestuário deve ser uma cousa majestosa e imponente, para bem 
impressionar os estrangeiros que nos visitem. A seda e a lã ficarão pouco mais caras que os 
tecidos de algodão. Toda a gente vestir-se-á de seda ou de lã e as populações das nossas 
cidades terão um ar de abastança que muito favoravelmente há de impressionar os estran-      
geiros.
Um outro refletiu:
-- Vossa Excelência vai impedir o movimento de passageiros dentro da cidade e 
dentro do país.
-- Será um benefício. O barateamento das passagens só traz a desmoralização da 
família. Com as passagens caras, diminuirão os passeios, os bailes, as festas, as visitas, os 
piqueniques, conseguintemente os encontros de namorados, a procura de casas suspeitas, etc., 
de forma que os adultérios e as seduções sensivelmente hão de ser mais raros.
Dessa maneira, o genial Karpatoso, êmulo do meirinho Ben Venanko, o financeiro, 
foi arredando uma por uma as objeções que eram feitas ao seu projeto de orçamento da receita.
Houve uma crise no ministério e logo ele foi nomeado ministro da Fazenda, com o 
orçamento que fizera votar. Foram tais os processos de contrabando que teve de estudar, tanto 
meditou sobre eles, que um dia, telegrafou a um seu subalterno que apreendera um grande, um 
imenso contrabando e prendera os infractores, desta forma: "Fuzile todos".
O homem estava louco e morreu pouco depois. A secção elegante de um jornal de lá, 
o Diário Mercantil -- "De Cócoras" -- fez-lhe o necrológio; o novo ministro, entretanto, não 
pagou, ao redator dela, nada pelo serviço assombroso que prestar-a às letras do país.


           II
  
 A nobreza de Bruzundanga 
  
UM leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me uma amável cartinha, 
pedindo-me esclarecimentos sobre os usos, os costumes, as instituições civis sociais e políticas 
da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
Diz-me ele que procurou informações de tal país em compêndios de geografia, em 
dicionários da mesma disciplina e várias obras, nada encontrando a respeito.
O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não 
procurou informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando 


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fabulosos lucros aos impressores e editores, livros escritos em várias línguas e destinados a 
fazer a propaganda do país no estrangeiro.
É estranho; pois que, por meio de tais livros, muita gente tem feito fortuna e 
adquirido notoriedade nos corredores das Secretarias e nos desvãos do Tesouro da República 
da Bruzundanga.
Pode ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas 
livrarias principais; mas não é aí que eles podem ser encontrados.
As obras que a república manda editar para a propaganda de suas riquezas e 
excelências, logo que são impressas completamente, distribuem-se a mancheias por quem as 
queira. Todos as aceitam e logo passam adiante, por meio de venda. Não julgue o meu 
correspondente que os "sebos" as aceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, 
tão infladas de um optimismo de encomenda que ninguém as compra, por sabê-las falsas e 
destituídas de toda e qualquer honestidade informativa, de forma a não oferecer nenhum lucro 
aos revendedores de livros, por falta de compradores.
Onde o meu leitor poderá encontrá-las, se quer ter informações mais ou menos 
transbordantes de entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, 
assim mesmo em fragmentos, pois todos as pedem nas repartições públicas para vendê-las a 
peso aos retalhistas de carne verde, aos vendeiros e aos vendedores de couves.
Contudo, a fim de que o meu delicado missivista não fique fazendo mau juízo a meu 
respeito, vou dar-lhe algumas informações sobre o poderoso e rico país da Bruzundanga.
Hoje lhe falarei das nobrezas da grande Nação; proximamente, em artigos sucessivos, 
tratarei de outras instituições e costumes. 
A nobreza da Bruzundanga se divide em dous grandes ramos. Talqualmente como na 
França de outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada, na Bruzundanga 
existe a nobreza doutoral e uma outra que, por falta de nome mais adequado, eu chamarei de 
palpite.
A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas 
superiores, que-são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não 
existe aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma 
profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na 
Bruzundanga, não.
Lá, o cidadão que se asma de um título em uma das escolas citadas, obtém 
privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo 
mesmo aceita esse estado de cousas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. 
Uma pessoa da plebe nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem 
pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre papel de Holanda.
As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as 
pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família toda, os 
colaterais, e os afins. Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho:
-- Minha prima está casada com o doutor Bacabau.
Ele se julga também um pouco doutor. Joana d'Arc não enobreceu os parentes?
A formatura é dispendiosa e demorada, de modo que os pobres, inteiramente pobres, 
isto é, sem fortuna e relações, poucas vezes podem alcança-la.
Cousa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral, não são os 
exames da escola superior; são os exames preliminares, aqueles das matrículas que constituem 
o nosso curso secundário...
Em geral, apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres e não 
constituem para os aspirantes senão uma vigília de armas para serem armados cavaleiros.
O título -- doutor -- anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito 
do -- dom -- em terra de Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu prestígio 


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nobiliárquico. Quando se está em face de um coronel com o curso de engenharia, o modo de 
tratá-lo é matéria para atrapalhações protocolares. Se só se o chama tout court -- doutor 
Kamisão --, ele ficará zangado porque é coronel; se se o designa unicamente por coronel,  ele 
julgará  que  o  seu  interlocutor  não  tem  em grande  consideração o seu título 
universitário-militar.
Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas,  juntam os  dous títulos, mas há 
ainda aí uma dificuldade na precedência  deles, isto  é, se  se devem designar tais senhores 
por -- doutor coronel -- ou -- coronel doutor.  
Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck. Se 
o nosso grande especialista em cousas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama 
da inteligência brasileira.
Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, 
agora, que ver no tocante às leis. 
O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes 
crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam isto, apesar da 
Constituição, etc., etc.
Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais, sogros, etc., 
trataram de reservar o maior número de lugares do Estado para eles. Capciosamente, os 
regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo esse desideratum.
Assim, é que os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes aos nossos 
delegados, cargos que exigem o conhecimento de simples rudimentos de direito, mas muito 
tirocínio e hábito de lidar com malfeitores, só podem ser exercidos por advogados, nomeados 
temporariamente.
A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas, mas as leis 
ordinárias acharam meios e modos de permitir que os doutores acumulassem. São cargos 
técnicos que exigem aptidões especiais, dizem. A Constituição não fez exceção, mas os 
doutores hermeneutas acharam uma.
Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da 
Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são 
a um só tempo professores de grego no Ginásio Secundário do Estado, professores de oboé, 
no Conservatório de Música, e peritos louvados e vitalícios dos escombros de incêndios.
Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor jurídico da 
principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços metalúrgicos do 
Estado e examinador das candidatas a irmãs de caridade.
Como vêem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentes aos seus 
diplomas.
Um empregado público qualquer que não seja graduado, não pode ser eleito 
deputado; mas a mesma lei eleitoral faz exceção para aqueles funcionários que exercem cargos 
de natureza técnica, isto é, doutores. Já vimos que espécie de técnica é a tal tão estimada na 
Bruzundanga. Convém, entretanto, contar um fato elucidativo. Um doutor de lá que era até 
lente da Escola dos Engenheiros, apesar de ter outros empregos rendosos, quis ser inspetor da 
carteira cambial do banco da Bruzundanga. Conseguiu e, ao dia seguinte de sua nomeação, 
quando se tratou de afixar a taxa do câmbio, vendo que, na véspera havia sido de 15 3/16, o 
sábio doutor mandou que o fizesse no valor de 15 3/32. Um empregado objetou:
-- Vossa Excelência quer fazer descer o câmbio?
-- Como descer? Faça o que estou mandando! Sou doutor em matemática.
E a cousa foi feita, mas o sábio deixou o lugar, para estudar aritmética.
Continuemos a citar fatos para que esta narração tenha o maior cunhode verdade, 
apesar de que muita coisa possa parecer absurda aos leitores.
Certo dia li nos atos oficiais do Ministério de Transportes e Comunicações daquele 


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país, o seguinte:
"F., amanuense dos Correios da província dos Cocos, pedindo fazer constar de seus 
assentamentos o seu título de doutor em medicina. --  Deferido".
O pedido e o despacho dispensam qualquer comentário; e, por eles, todos podem 
aquilatar até que ponto chegou, na Bruzundanga, a superstição doutoral. Um amanuense que 
se quer recomendar por ser médico, é fato que só se vê no interessante país da Bruzundanga.
Outros casos eloqüentemente comprobativos do que venho expondo, posso ainda 
citar.
Vejamos.
Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país, votou-se um 
orçamento, dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem os que ele diminuiu? Os 
impostos sobre os médicos e advogados. Ainda mais.
Quando se tratou de organizar uma espécie de serviço militar obrigatorio, o governo 
da Bruzundanga, não podendo isentar totalmente os aspirantes a doutor, consentiu que eles 
não residissem e comessem nos quartéis, no intuito piedoso de não lhes interromper os 
estudos. Entretanto, um caixeiro que fosse sorteado perderia o emprego, como todo e qualquer 
empregado de casa particular.
Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias. O 
mandarinato chinês, ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga, tem os seus 
mandarins botões de safira, de topázio, de rubi, etc. No país em questão, eles não se 
distinguem por botões, mas pelos anéis. No intuito de não fatigar os leitores, vou dar-lhes um 
quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com a sua respectiva hierarquia colocada em 
ordem descendente. Guardem-no bem. Ei-lo, com as pedras dos anéis:

                            -          Médicos (Esmeralda)
                          /            Advogados (Rubi)
                        /              Engenheiros (Safira)
                      /                Engenheiros militares (Turqueza)
    Doutores
                      \                Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do 
anel)
                        \              Farmacêutico (Topázio)
                          -            Dentista (Granada)

Em linhas gerais, são estas as características mais notáveis da nobreza doutoral da 
Bruzundanga. Podia acrescentar outras, sobre todos os seus graus. Lembrarei, porém, ao meu 
correspondente que os três primeiros graus são mais ou menos equivalentes; mas os três 
últimos gozam de um abatimento de 50% sobre o conceito que se faz dos primeiros.
Da outra nobreza, tratarei mais tarde, deixando de lado as meninas das Escolas 
Normais, com os seus bonés de universidade americana, e os bacharéis em letras da 
Bruzundanga, porque lá não são considerados nobres. Entretanto, as primeiras têm um anel 
distintivo que parece uma montra de joalheria, pela quantidade de pedras que possui; e os 
últimos anunciam o seu curso com uma opala vulgar. Ambos esses formados são lá 
considerados como falsa nobreza.


         III          

A outra nobreza da Bruzundanga 



[Linha 800 de 3733 - Parte 1 de 4]



NO artigo precedente, dei rápidas e curtas indicações sobre a primeira espécie da 
nobiliarquia da República da Bruzundanga. Falei da nobreza doutoral. Agora vou falar de uma 
outra mais curiosa e interessante.
A nobreza dos doutores se baseia em alguma cousa. No conceito popular, ela é 
firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças 
casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais 
rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus 
filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito. 
Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais ou menos 
carimbado pelo governo, com um fitão e uma lata de prata, onde há um selo, e na tampa uma 
dedicatória à dama dos pensamentos do gentil cavalheiro que se fez doutor.
A outra nobreza da Bruzundanga, porém, não tem base em cousa alguma; não é 
firmada em lei ou costume; não é documentada por qualquer espécie de papel, édito, código, 
carta, diploma, lei ou o que seja. Foi por isso que eu a chamei de nobreza de palpite. Vou dar 
alguns exemplos dessa singular instituição, para elucidar bem o espírito dos leitores.
Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chamava-se, por exemplo, 
Ricardo Silva da Conceição. Durante a meninice e a adolescência foi conhecido assim em 
todos os assentamentos oficiais. Um belo dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. 
Não sendo doutor, julga o seu nome muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo a parecer mais 
nobre. Muda o nome e passa a chamar-se: Ricardo Silva de la Concepción. Publica o anúncio 
no Jornal do Comércio local e está o homem mais satisfeito da vida. Vai para a Europa e, por 
lá, encontra por toda a parte príncipes, duques, condes, marqueses da Birmânia, do Afganistão 
e do Tibete. Diabo! pensa o homem. Todos são nobres e titulares e eu não sou nada disso.       
Começa a pensar muito no problema e acaba lendo em um romance folhetim de A. 
Carrillo, -- nos Cavalheiros do amor, por exemplo -- um título espanhol qualquer. Suponhamos 
que seja: Príncipe de Luna y Ortega. O homem diz lá consigo: "Eu me chamo Concepción, 
esse nome é espanhol, não há dúvida que eu sou nobre"; e conclui logo que é descendente do 
tal Príncipe de Luna y Ortega. Manda fazer cartões com a coroa fechada de príncipe, acaba 
convencido de que é mesmo príncipe, e convencendo os seus amigos da sua prosápia elevada.
Com um destes que se improvisou príncipe assim de uma hora para outra, aconteceu 
uma anedota engraçada.
Ele se chamava assim como Ferreira, ou cousa que o valha. Fez uma viagem à Europa 
e voltou príncipe não sei de quê.
Foi visitar as terras dos pais e dos avós que estavam abandonadas e entregues a 
antigos servidores.
Um dos mais velhos destes, veio visitá-lo arrimado a um bastão que escorava a sua 
grande velhice. Falou ao homem, ao filho do seu antigo patrão como falara ao menino a quem 
ensinara a armar laços e arapucas.
O novel príncipe formalizou-se e disse:
-- Você não sabe, Heduardo, que eu sou príncipe?
-- Quá o quê, nhonhô. Vancê não pode sê príncipe. Vancê não é fio de imperadô, 
cumo é?
O recente nobre, ci-devant Ferreira, estomagou-se e não quis mais conversas com 
aquele velho decrépito que tinha da nobreza idéias tão caducas. Não lhe deu mais trela.
Essa improvisação de títulos se dá pelas formas as mais estranhas.
Um rapaz de certos haveres, cujo pai mourejera muito para arranjar alguns cobres, foi 
um dia para o estrangeiro, bem enroupado, com algumas libras no bolso. Fora das vistas 
paternas e sentindo longe a hipocrisia da Bruzundanga, meteu-se em todas as pândegas que 
lhe passou pela cabeça.


[Linha 850 de 3733 - Parte 1 de 4]


Uma noite, em que estava cercado de damas alegres, em uma mesa de café cantante, 
uma delas deu na telha de tratá-lo de marquês. Era senhor marquês, para aqui; senhor marquês 
para ali.
O rapaz espantou-se a princípio, mas com o calor da conversa e a insistência da 
dama, ele perguntou ingenuamente:
-- Mas eu sou marquês?
-- É -- disse a dama galante.
-- Como?
-- Vou já mostrar ao senhor marquês. Dê-me vinte francos e os nomes de seus pais, 
que já lhe dou a prova.
Ele assim fez e, dentro de vinte minutos, o rapazola recebia a sua árvore genealógica, 
donde se concluía que descendia dos marqueses de Libreville.
A vista de tão poderoso documento, o cidadão que partira da Bruzundanga 
simplesmente chamando-se Carlos Chavantes (E uma hipótese), voltou da estranja com o 
altissonante título de Marquês de Libreville. O pai continuou a chamar-se Chavantes; ele, 
porém, era marquês. O' manes de d'Hozier!
Alguns nobres da casta dos doutores acumulam também a outra nobreza. São condes 
ou duques e doutores; e usam alternativamente o título de uma e o da outra aristocracia. 
Passam assim a ser conhecidos por dous nomes -- cousa que é quase verificada entre os 
malfeitores e outros conhecidos da polícia.
Essa recrudescência de títulos nobiliárquicos apareceu desde que a Bruzundanga se 
fez república, e desconheceu os títulos de nobreza porque o país havia sido governado pelo 
regímen monárquico, com uma nobreza modesta não hereditária, que mais parecia o tchin 
russo, isto é, uma nobreza de burocratas, do que mesmo uma nobreza feudal. O rei que a criou 
não a chamava mesmo "nobreza", mas taffetas.
No país, esses titulares de palpite não têm-importância alguma na massa popular. Os 
do povo respeitam mais um modesto doutor de farmácia pobre do que um altissonante Medina 
Sidonia de última hora; a élite, porém, a nata, -- essa sim! -- tem por eles o respeito que se 
devia aos antigos nobres.
O povo sempre os recebe com o respeito que nós tínhamos, aqui, pelo Príncipe Ubá 
II, d'Africa.
A gente civilizada e rica, entretanto, não pensa assim, leva-os a sério e os seus títulos 
são berrados nos salões como se estivessem ali um Montmorency, um Conde de Vidigueira, 
um Duque d'Alba, que, por sinal, foi tomado para ascendente de um grave senhor da 
Bruzundanga, que desejava a incorporação do proletário à sociedade moderna.
Os costumes daquele longínquo país são assim interessantes e dignos de acurado 
estudo. Eles têm uma curiosa mistura de ingenuidade infantil e idiotice senil. Certas vezes, 
como que merecem invectivas de profeta judaico; mas, quase sempre, o riso bonanchão de 
Rabelais.
O que ficou dito sobre as suas duas nobrezas, penso eu, justifica esse juízo. E para 
elas ainda é bom não esquecer que devemos julgá-las como aconselha Anatole France; com 
ironia e piedade.

           IV          
  
A política è os políticos da Bruzundanga    

A minha estadia na Bruzundanga foi demorada e proveitosa. O país, no dizer de 
todos, é rico, tem todos os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, 
mas vive na miséria. De onde em onde, faz uma "parada" feliz e todos respiram. As cidades 


[Linha 900 de 3733 - Parte 1 de 4]


vivem cheias de carruagens; as mulheres se arreiam de jóias e vestidos caros; os cavalheiros 
chics se monstram, nas ruas, com bengalas e trajos apurados; os banquetes e as recepções se 
sucedem. 
Não há amanuense do Ministério do Exterior de lá que não ofereça banquetes por 
ocasião de sua promoção ao cargo imediato.
Isto dura dois ou três anos; mas, de repente, todo esse aspecto da Bruzundanga 
muda. Toda a gente começa a ficar na miséria. Não há mais dinheiro. As confeitarias vivem às 
moscas; as casas de elegâncias põem à porta verdadeiros recrutadores de fregueses; e os judeus 
do açúcar e das casas de prego começam a enriquecer doidamente.
Por que será tal coisa? hão de perguntar.
E que a vida econômica da Bruzundanga é toda artificial e falsa nas suas bases, 
vivendo o país de expedientes.
Entretanto, o povo só acusa os políticos, isto é, os seus deputados, os seus ministros, 
o presidente, enfim.
O povo tem em parte razão. Os seus políticos são o pessoal mais medíocre que há. 
Apegam-se a velharias, a cousas estranhas à terra que dirigem, para achar solução às 
dificuldades do governo.
A primeira cousa que um político de lá pensa, quando se guinda às altas posições, é 
supor que é de carne e sangue diferente do resto da população.
O valo de separação entre ele e a população que tem de dirigir faz-se cada vez mais 
profundo. 
A Nação acaba não mais compreendendo a massa dos dirigentes, não lhe entendendo 
estes a alma, as necessidades, as qualidades e as possibilidades.
Em face de um país com uma população já numerosa em relação ao território 
ocupado efetivamente -- na Bruzundanga, os seus políticos só pedem e proclamam a 
necessidade de introduzir milhares e milhares de forasteiros.
Dessa maneira, em vez de procurarem encaminhar para a riqueza e para o trabalho a 
população-que já está, eles, por meio de capciosas publicações, mentirosas e falsas, atraem para 
a nação uma multidão de necessitados cuja desilusão, após certo tempo de estadia, mais 
concorre para o  mal-estar do país.
Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes, o 
verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes.
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