sábado, 21 de abril de 2018

Luzia Homem - Parte 1 de 5 - Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 1 de 5 -  Domingos Olímpio


Luzia Homem
Domingos Olímpio


DADOS BIOGRÁFICOS:
DOMINGOS OLÍMPIO BRAGA CAVALCANTI, cearense de Sobral. Nasceu em 18 de setembro de 1850 e faleceu em 06 e outubro de 1906, no Rio de Janeiro. Advogado e jornalista. 
Por sua composição "Luzia-Homem", publicada em 1903, é considerado um clássico, enquadrando-se no gênero "Ciclo das Secas", da Literatura Nordestina. Compôs várias peças teatrais, tendo se realçado também na carreira jornalística. Fundou e dirigiu a revista "Os Anais", onde publicou o romance "O Almirante", deixando incompleto "Uirapuru", também romance. 
Alguns de seus romances são realistas, de cunho regionalista como se observa nos tipos e cenas que descreve. Sua prosa é exuberante, dúctil e pitoresca. É considerado o precursor do moderno romance brasileiro. 


RESUMO DO ENREDO:
O cenário é o interior do Ceará, nos fins de 1878, durante uma grande seca. Na construção da penitenciária de Sobral, pequena cidade do Ceará, muitos retirantes trabalham para não morrerem de fome. 
Uma linda morena chama a atenção de todos. É Luzia que faz serviços de homem para poder receber ração dobrada, em virtude de ter a mãe doente em casa. Seu corpo é esbelto e feminino e, acostumada que fora na antiga fazenda do pai a trabalhar em serviços pesados, tinha muita força, fazendo o que muitos homens não podiam. Por isso recebera o apelido de Luzia-Homem. Recatada e silenciosa, não tinha muitas relações de amizade. No entanto, o soldado Crapiúna era apaixonado ou pelo menos atraído fisicamente com violência por Luzia. Esta não correspondia aos seus cortejos, desprezando-o e tornando o soldado cada vez mais obcecado por ela.

(SEGUE ABAIXO ESTA OBRA COMPLETA DIVIDIDA EM 5 PARTES)


O morro do Curral do Açougue emergia em suave declive da campina ondulada. 
Escorchado, indigente de arvoredo, o cômoro enegrecido pelo sangue de reses sem conto, 
deixara de ser o sítio sinistro do matadouro e a pousada predileta de bandos de 
urubus-tingas e camirangas vorazes.

Bateram-se os vastos currais, de grossos esteios de aroeira, fincados a pique, rijos como 
barras de ferro, currais seculares, obra ciclópica, da qual restava apenas, como lúgubre 
vestígio, o moirão ligeiramente inclinado, adelgaçado no centro, polido pelo contínuo atrito 
das cordas de laçar as vítimas, que a ele eram arrastadas aos empuxões, bufando, resistindo, 
ou entregando, resignadas e mansas, o pescoço à faca do magarefe. Ali, no sítio de morte, 
fervilhavam, então, em ruidosa diligência, legiões de operários construindo a penitenciária 
de Sobral.

No cabeço saturado de sangue, nu e árido, destacando-se do perfil verde-escuro da serra 
Meruoca, e dominando o vale, onde repousava, reluzente ao sol, a formosa cidade 
intelectual, a casaria branca alinhada em ruas extensas e largas, os telhados vermelhos e as 
altas torres dos templos, rebrilhando em esplendores abrasados, surgia em linhas severas e 
fortes, o castelo da prisão, traçado pelo engenho de João Braga, massa ainda informe, 
áspera e escura, de muralhas sem reboco, enteadas em confusa floresta de andaimes a 
esgalharem e crescerem, dia a dia, numa exuberância fantástica de vegetação despida de 
folhas, de flores e frutos. Pela encosta de cortante piçarra, desagregado em finíssimo pó, 
subia e descia, em fileiras tortuosas, o formigueiro de retirantes, velhos e moços, mulheres e 
meninos, conduzindo materiais para a obra. Era um incessante vai e vem de figuras 
pitorescas, esquálidas, pacientes, recordando os heróicos povos cativos, erguendo 
monumentos imortais ao vencedor.

Acertara a Comissão de Socorros em substituir a esmola depressora pelo salário emulativo, 


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pago em rações de farinha de mandioca, arroz, carne de charque, feijão e bacalhau, 
verdadeiras gulodices para infelizes criaturas, açoitadas pelo flagelo da seca, a calamidade 
estupenda e horrível que devastava o sertão combusto. Vinham de longe aqueles magotes 
heróicos, atravessando montanhas e planícies, por estradas ásperas, quase nus, nutridos de 
cardos, raízes intoxicantes e palmitos amargos, devoradas as entranhas pela sede, a pele 
curtida pelo implacável sol incandescente.

Na construção da cadeia havia trabalho para todos. Os mais fracos, debilitados pela idade 
ou pelo sofrimento, carregavam areia e água; aqueles que não suportavam mais a fadiga de 
andar amoleciam cipós para amarradio de andaimes; outros menos escarvados amassavam 
cal; os moços ainda robustos, homens de rija têmpera, superiores às inclemências, sóbrios e 
valentes, reluziam de suor britando pedra, guindando material aos pedreiros, ou conduzindo 
às costas, de longe, das matas do sobpé da serra, grossos madeiros enfeitados de palmas 
virentes, de ramos de pereiro de um verde fresco e brilhante, em festivo contraste com o 
sítio ressequido e desolado. E davam conta da tarefa, suave ou rude, uns gemendo, outros 
cantando álacres, numa expansão de alívio, de esperança renascida, velhas canções, 
piedosas trovas inolvidáveis, ou contemplando com tristeza nostálgica, o céu impassível, 
sempre límpido e azul, deslumbrante de luz.

Esse concerto esdrúxulo de vozes humanas em cânticos e queixumes, de rugidos da matéria 
transformando-se aos dentes dos instrumentos, aos golpes dos martelos, de brados de 
comando dos mestres e feitores, essa melopéia do trabalho amargurado ou feliz, era, às 
vezes, interrompido por estrídulos assobios, alarido de gritos, gargalhadas rasgadas e as 
vaias de meninos que se esganiçavam: era uma velha alquebrada que deixara cair a trouxa de 
areia; um cabra alto de hirsuta cabeleira marrafenta, lambuzado de cal, que escorregara ao 
galgar uma desconjuntada e vacilante escada, e lançava olhares ferozes à turba que o 
chasqueava, era a carreira constante das moças e meninas para as quais o trabalho era um 
brinquedo; eram gritos de dor de um machucado, rodeado pela multidão curiosa e 
compassiva, ou os gemidos de algum infeliz, tombando prostrado de fadiga, pedindo pelo 
amor de Deus, no estertor da hora extrema, não o deixassem morrer sem confissão, sem luz, 
como um bicho.

Cercava o edifício em construção, um exótico arraial de latadas, de choupanas, de ranchos 
improvisados, onde trabalhavam carpinteiros falqueando longas vigas de pau-d'arco, 
frechais de frei-jorge e gonçalo-alves, ou serrando e aplainando cheirosas tábuas de cedro. 
Marcando a subida do morro, se alinhavam em rua tortuosa, pequenas barracas feitas de 
costaneiras, cascas e sarrafos, as quais serviam de abrigo às costureiras, fazendo, dos sacos 
de víveres, roupa para os esmolambados, envoltos em nojentos trapos que lhes mal 
disfarçavam o pudor e a horrenda magreza esquálida. De outras barracas subia ao ar, em 
novelos espessos ou tênues espirais azuladas, o fumo de lareiras, onde, sobre toscas trempes 
de pedra, ferviam, roncando aos borbotões, grandes panelas de ferro, repletas de comida.

Ao cair da tarde, quando cálida neblina irradiava da terra abrasada, esbatia o recorte das 
montanhas ao longe, e adelgaçava o colorido da paisagem em tons pardacentos e confusos, 
o sino da Matriz, como um colossal lamento, troava a Ave-Maria. Cessava o rumor e o 
mestre da obra batia com o pesado martelo o prego, em solene cadência, anunciando o 
termo do trabalho.

A multidão de operários, depois de silenciosa e contrita prece, se agrupava em torno dos 
feitores; e, respondido o ponto, desfilava, depositando, em determinado sítio, a ferramenta 


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e vasilhame. Fatigada, suarenta, dispersava-se, dividindo-se em grupos, seguindo várias 
direções em busca de pousada, ou desdobrando-se na curva dos caminhos, nas forquilhas 
das encruzilhadas, até se sumir como sombras desgarradas, imersas na caligem da noite 
iminente.

Começava, então, a vida nos acampamentos, desertos durante o dia. E descantes à viola, 
ruídos de sambas saracoteados, de vozes lâmures ou irritadas, de gargalhadas incontinentes 
formavam incoerentes acordes com as rajadas ásperas de viração a silvar nos galhos secos e 
contorcidos das moitas mortas de jurema e mofumbo, ou nas palmas virentes das 
carnaubeiras imortais.

No céu límpido, profundo e sereno, em quietitude de lago tranqüilo, sem as manchas de 
nuvens errantes, tremeluziam em esplêndidas constelações, miríades de estrelas. Na terra 
escura, um colar de luzes tímidas, como círios melancólicos velando enorme esquife, cercava 
a cidade adormecida em torpor de monstro saciado. E no alto sinistro do curral do 
Açougue, erguia-se, silenciosa e solitária, a molhe sombria da penitenciária, como um 
lúgubre monumento consagrado à maldade humana.



II

O francês Paul - misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na despreocupada 
viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral, costumava vaguear pelos ranchos de 
retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da vida do povo, nos 
seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas, ilustradas com esboços de tipos 
originais, cenas e paisagens - trabalho paciente e douto, perdido no seu espólio de 
alfarrábios, de coleções de botânica e geologia, quando morreu, inanido pelos jejuns, como 
um santo.

Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de notas:

"Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça."

Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinqüenta tijolos.

Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, 
de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e 
assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo 
aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha e, com eles, Raulino 
Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em 
pitorescas narrativas.

Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto 
impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas 
das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de 
algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de 
casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da 
poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de 
chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. 


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Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de 
infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com 
inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.

- É de uma soberbia desmarcada - diziam as moças da mesma idade, na grande maioria 
desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.

- A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona - 
murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas 
insinuações galantes. - Aquilo nem parece mulher fêmea - observava uma velha. alcoveta e 
curandeira de profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece 
bigode de homem...

- Qual, tia Catirina! O Lixande que o diga! - mandou uma cabocla roliça e bronzeada, de 
dentes de piranha, toda adornada de jóias de pechisbeque e fios de miçanga, muito 
besuntada de óleos cheirosos.

- Não diga isso que é uma blasfémia - atalhou Teresinha loura, delgada e grácil, de olhar 
petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa.

- Por ela eu puno; meto a mão no fogo...

- Havia de sair torrada. Isso de mulher, hoje em dia, é mesmo uma desgraceira.. .

- Mas você não pode negar que ela viva no seu canto sossegada sem se importar com a vida 
dos outros e fazendo pela sua, como uma moira de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a 
poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e 
suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo...

- Tu a defendes, porque és pareceira dela...

- Antes fosse! ... Outros galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida 
nesta canalhada de retirantes. Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de 
vergonha,

- Quem perdeu tudo isso para ela achar?.. obtemperou numa rasgada gargalhada de 
sarcasmo brutal, a roliça cabocla de agudos dentes.

- Qual? ... Vão atrás da sonsa! ...

- Deixem estar que há de ser como as outras. Em boniteza, verdade, verdade, mete vocês 
todas num chinelo. Aquilo é mulher para dar e apanhar - disse chasqueando um soldado de 
linha, destacado no Curral do Açougue para manter a ordem, pois não raro rixavam e se 
engalfinhavam mulheres, ou se esboroavam homens por fúteis pretextos: houvera mesmo 
sérios conflitos e lutas sangrentas, tão abatido estava, naquela pobre gente

o senso moral.

- Vão ver que você, seu Crapiúna, também está fazendo roda a Luzia-Homem?!...



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Crapiúna, o tal soldado, era mal afamado entre os homens e muito acatado pelas mulheres, 
graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões doirados, o cinturão e a baioneta 
polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchouli da pomada, que lhe embastia a 
marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto. Possuía, apesar das duras feições, o 
encanto militar, a que é tão caroável o animal caprichoso, e fútil, a mulher de todas as 
categorias e condições sociais, talvez porque, sendo fraca, naturalmente, se deixa atrair pelas 
manifestações da força.

Contavam dele histórias emotivas, aventuras galantes, feitos de bravura, façanhas na 
perseguição de criminosos célebres; ele estivera nas escoltas que prenderam o facínora José 
Gabriel e o cangaceiro Zé Antônio do Fechado, cavaleiro e bravo à antiga, de raça de 
heróis, os Brilhantes, Ataídes, e Vicente Lopes do Caminhadeira, representantes dispersos, 
atávicos, espécimens ferozes de banditismo que foi a glória de Portugal, e lhe conquistou 
mundos, descobrindo-os, roubando-os com a indômita coragem de piratas, consagrados pela 
imperecível gratidão da pátria à póstera veneração.

Não faltavam ao soldado feitos que lhe aumentassem o prestígio de pessoa bem 
conformada, sem vícios que lhe dessem o realce de um afortunado. Dizia-se, à puridade, 
nos colóquios da protérvia popular, que, antes de ser recrutado por audácias sensuais, e 
envergar a farda, fora guarda-costas de um famigerado fazendeiro da Barbalha, onde 
executara proezas cruéis, de pasmar, em verdes anos, pois mal lhe despontava, então, o 
buço. Tinha o ativo de três mortes e outros crimes menores, valendo-lhe isto por título ao 
temeroso respeito do povo.

A insinuação de Romana ferira certo o alvo, e assanhara a secreta cupidez de Crapiúna, que 
não se conformava com os modos retraídos e a impassível frieza da mulher-homem, 
resistência passiva e calma, ante a qual se amesquinhava a sua fama e sentia arranhado o 
amor-próprio de vitorioso em fáceis conquistas. Sempre que a encontrava, dirigia-lhe, com 
saudações reverentes, palavras de ternura e erotismos incontinentes, olhares e gestos de 
desejos mal sofreados. E, tão frequentes se tornaram esses meios de obsessão, que um dia a 
moça os rebateu secamente, com firmeza inelutável:

- Deixe-me sossegada. Não se meta com a minha vida. Eu não sou o que o senhor supõe...

- Deixa-te de luxos, rapariga - respondeu Crapiúna, mostrando-lhe um grosso anel de ouro. - 
Olha a memória de ouro que tenho para ti... Não te zangues com o teu mulato...

Desde então entrou a acompanhá-la, a perseguí-la por toda a parte, nas horas de trabalho na 
penitenciária, nas caminhadas ao rio e a rondar durante a noite pela vizinhança da casinha 
velha, lá para as bandas da Lagoa do Junco, onde ela morava com a mãe, velha e enferma, a 
boa, a santa tia Zefa. 

Exasperada por essa obsessão afrontosa, cada vez mais ardente e descomedida, Luzia 
queixou-se ao administrador que obteve do tenente, comandante do destacamento, a 
remoção do temerário galante para outros serviços, guarda e faxina da prisão e, nos dias de 
folga, a polícia da feira.

O tão severo, merecido castigo penetrou fundo no duro coração do soldado, remexendo a 
vasa de instintos, ali sedimentada em demorado repouso. Mais ainda lhe moeram os 
melindres, os comentários irreverentes, os aplausos, as insinuações ferinas e o chasco de ser 


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punido por queixa da mulher apetecida, a quem ele, com fingido desdém, chamara uma 
retirante à-toa, sem eira nem beira, toda arrebitada de luxos e medeixes. E ainda mais o 
estomagava o ser a opinião, em esmagadora maioria, favorável ao castigo.

Acharam todos fora acertada providência tirar aquela onça do pasto para tranqüilidade e 
segurança das moças e das mulheres casadas, pois já era demasiada a falta de respeito 
escandalizadora. Aquele homem de maus bofes, era um perigo. E surdiam histórias de 
crimes, anedotas grotescas, revelação de casos repugnantes, verdadeiros ou inventados pela 
fantasia do populacho nos excessos de saborear a vingança, denegrindo-lhe a reputação e 
deturpando-o para transformá-lo de pelintra quente e apaixonado, em reles monstro 
horripilante.

Crapiúna sabia dessas más ausências, das calúnias e falsos testemunhos que lhe levantavam, 
cobardemente, pelas costas; das pragas e esconjuros, arrogados pelas suas vítimas e 
desafetos. Safados uns, ingratos outros. Corja de mal-agradecidos, que já se não lembravam 
dos benefícios de ontem. A muitos deles, desses que agora o malsinam por intrigas de 
mulheres, havia morto a fome. Não se tinha em conta de santo, confessava; fizera certas 
vadiações de homem solteiro, que não tinha contas que dar; mas ninguém lhe podia lançar 
em rosto o haver aforciado mulheres honestas. Quanto à remoção, até dava graças a Deus 
por se ver livre daquela cambada de retirantes nojentos e leprosos, cujo aspecto, em jejum, 
causava engulhos; seria, entretanto, melhor sair da obra por sua livre vontade e não por 
queixa... E logo de quem? De Luzia-Homem... Oh? o diabo daquela sonsa era capaz de virar 
pelo avesso o juízo de uma criatura, e provocar muita desgraça por causa daquele imposão 
de querer ser melhor que as outras... Tirando-lhe a força bruta, não passava de uma pobre 
tatu, que só tem por si o dia e a noite.

- Você está... - mas é fisgado pela macho e fêmea - arriscou o camarada Belota que lhe 
ouvia a confidência - Aquilo tem mandinga... Quem sabe se não te enfeitiçou! ... Olha que 
ela tem uns olhos que furam a gente.. . E então - aquela cabeleira... Acho melhor pedir à 
Chica Seridó uma oração forte para desmanchar quebrantos e fechar o corpo contra mau 
olhado.

- Qual, o quê!... - retorquiu Crapiúna, com afetado desdém - Eu até nem gosto dela... Não 
lhe acho graça... Depois... com semelhante força... nem parece mulher...

- Tira o cavalo da chuva e conta a história direito, Crapiúna. Todas as mulheres são iguais e 
merecem tudo; a demora é grelar no coração o capricho, principalmente, quando resistem. 
Fora ela um monstro da natureza; paixão não enxerga nem repara e, quando nos ataca, é 
como o sarampo: até jasmim de cachorro é remédio. E deixa falar quem quiser, que é 
soberba, sonsa, mal-ensinada... Ela não é nenhum peixe podre. Não reparaste naqueles 
quartos redondos, no caculo do queixo. Na boca encarnada como um cravo?! E o buço?! ... 
Sou caidinho por um buço ... Ela quase que tem passa-piolho, o demônio da cabrocha...

- O que mais me admira é que não se diz dela tanto assim - afirmou Crapiúna pensativo, 
riscando com a unha do polegar a ponta do indicador.

- É por ser mais velhaca que as outras... Pergunta ao Alexandre...

- Que Alexandre? Aquele alvarinto que servia de apontador na obra: e passou depois para o 
armazém da Comissão? ... Aquilo é defunto em pé. Não é qualidade de homem para um 


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como eu.

- O caso é que ele gosta dela. Estão sempre perto um do outro, ao passo que o Crapiúna 
velho foi posto fora, como um cachorro tinhoso, e está aqui gemendo no serviço...

E como o soldado, em cujo coração se derramara fel, ficasse a cismar, Belota afastou-se 
com um gracejo ferino: 

- Ali é ver com os olhos e comer com a testa ou lamber vidro de veneno por fora, como rato 
de botica. Toma o meu conselho. Não te metas com a bruxa que cheiras vara!

Crapiúna não o ouviu. Contorcendo-se no martírio de onça acuada, com o coração caldeado 
no peito, estremecia à suspeita de um rival venturoso na disputa da cobiçada presa.





III



A população da cidade triplicava com a extraordinária afluência de retirantes. Casas de 
taipa, palhoças, latadas, ranchos e abarracamentos do subúrbio, estavam repletos a 
transbordarem. Mesmo sob os tamarineiros das praças se aboletavam famílias no extremo 
passo da miséria - resíduos da torrente humana que dia e noite atravessava a rua da Vitória, 
onde entroncavam os caminhos e a estrada real, traçado ao lado esquerdo do rio Acaracul, 
até ao mar, Eram pedaços da multidão, varrida dos lares pelo flagelo, encalhando no lento 
percurso da tétrica viagem através do sertão tostado, como terra de maldição ferida pela ira 
de Deus; esquálidas criaturas de aspecto horripilante, esqueletos automáticos dentro de 
fantásticos trajes, rendilhados de trapos sórdidos, de uma sujidade nauseante, empapados 
de sangue purulento das úlceras, que lhes carcomiam a pele, até descobrirem os ossos, nas 
articulações deformadas. E o céu límpido, sereno, de um azul doce de líquida safira, sem 
uma nuvem mensageira de esperança, vasculhado pela viração aquecida, ou intermitentes 
rodomoinhos a sublevarem bulcões de pó amarelo, envolvendo como um nimbo, a trágica 
procissão do êxodo.

Luzia viera na enxurrada, marchando, lentamente, a curtas jornadas, e fora forçada a 
esbarrar na cidade, por já não poder conduzir a mãe doente. Do capitão Francisco Marçal, o 
homem mais popular da terra, tão procurado padrinho, que contratara com o vigário 
pagar-lhe uma quantia certa, todos os anos, por espórtulas dos batizados, obtivera, por 
felicidade, uma casinha velha e desaprumada, onde se aboletou com relativo conforto. A 
vida lhe correu bem durante seis meses. Havia trabalho e ela ganhava o suficiente para se 
prover quase com fartura, Mas o coração pressentia, então, com vago terror, o perigo das 
pretensões de Crapiúna e ela procurava, por todos os meios, evitá-lo. Seu primeiro impulso, 
depois que lhe ele ousara falar em termos desabridos, foi anoitecer e não amanhecer; 
emigrar, confundir-se nas levas de famintos em busca das praias ubertosas, com os lagos 
povoados de curimãs, em cardumes assombrosos, os tabuleiros irrigados por orvalho 
abundante, cheios de plantações, e confinando, em contraste consolador, com a planície 
seca e estorricada.


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Além se desdobrava o grande, o soberbo mar infindo e glauco, a rugir lamentoso, 
despejando, envolta em rendas de espuma, a generosa esmola de peixes, moluscos e 
crustáceos saborosos. Com a proteção de Maria Santíssima venceria a travessia. Vinte léguas 
galgam-se depressa. Talvez tombasse, como os míseros, cujas ossadas alvejantes, 
descarnadas pelos urubus e marcarás, iam marcando o caminho das vítimas da calamidade.

E a mãe, a querida mãezinha, que era o seu tudo neste mundo? Não era possível 
abandoná-la a cuidados estranhos, doente, quase entrevada, como estava, a deitar a alma 
pela boca, quando a acometia o implacável puxado. Os brincos e o cordão de ouro, que lhe 
dera a madrinha, vendidos aos mascates da miséria, não dariam com que pagar o transporte 
da pobre velha em carroças puxadas por homens atrelados dois a dois, como animais de tiro. 
Era esse, naquela quadra de infortúnio, o veículo das famílias abastadas, que já não 
possuíam cavalos e muares de carga e montaria.

Nessa triste conjunção, venceu o dever. Luzia ficou resoluta a enfrentar, de ânimo sereno, o 
destino, e aparelhada para suportar os mais dolorosos lances da adversidade. Continuaria a 
trabalhar sem desfalecimento, retraindo-se quanto pudesse para evitar encontros com o 
importuno soldado. Por fortuna sua, Alexandre, o amigo dedicado e afetuoso, que se lhe 
deparara entre a multidão de desconhecidos e indiferentes, moço de maneiras brandas, 
muito paciente, muito carinhoso, com a tia Zefa, passando serões, noites em claro junto dela 
e da filha, num recato de adoração muda e casta, lhe poupava o vexame de ir à cidade: era 
ele que ia ao mercado comprar a quarta de carne fresca para o caldo da enferma, os 
remédios e consultar o médico, mister em que era auxiliado pelo Raulino, outro amigo da 
família.

Uma tarde, ao voltarem juntos da obra, Alexandre, impressionado pelo tom de penosa 
preocupação bem acentuado no semblante de Luzia, disse-lhe a medo:

- Se a senhora não se zangasse, eu acabava com essa reinação, dando um ensino ao Crapiúna 
...

- Não quero - retorquiu Luzia vivamente - Não tenho medo daquele miserável, mas não 
desejo dar nas vistas dessa gente desabusada. Depois que hão de dizer? ... Você não é nada 
meu para tomar dores por mim ... Aquilo não tem entranhas de cristão: é um malfazejo ...

Alexandre sentiu-se humilhado, supondo que a moça desconfiasse do seu valor, e, 
continuou com brandura tímida:

- Não seria a primeira vez ... Não sou nada seu, mas sou um homem capaz de jogar a vida 
em defesa de uma mulher de bem. Pensei que não se agravaria comigo ...

- Agravar-me?! ... Não pensei nisso. Não quero que se sacrifique por mim, que já muito lhe 
devo - favores que só Deus pagará. Imagine a briga de dois homens, pancadas, ferimentos, 
um crime e o meu nome detestado passando de boca em boca., Luzia-Homem causadora de 
tudo... Não quero, não. Faça de conta que aquele mal-encarado homem não existe ... Não 
tenha receio, Alexandre, eu sei defender-me. De mais a mais. .. tudo passa ...

Luzia confiava na ausência, mãe do esquecimento, para conjurar o perigo; entretanto, um 
mês depois, recebeu uma carta de Crapiúna, transbordante de frases de amor, em prosa e 


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verso - protestos lânguidos e trovas populares, escritas em péssima letra sobre papel de 
cercadura rendilhada, tendo, no ângulo superior, à esquerda, um coração em relevo, crivado 
de setas, desfechadas por travessos Cupidinhos alados. E leu-a com assombro e cólera, 
como se as letras disformes, enfileiradas em tortuosas linhas, e o pensamento sensual nelas 
expressado, lhe vergastassem cruelmente o rosto.

- Este homem será o causador da minha desgraça - murmurou ela com um soluce de pranto 
sufocado.

- Que tens, filha? - inquiriu a mãe... - Estás tão alterada? ... Que houve?

- Nada, mãezinha - respondeu Luzia, disfarçando a emoção que a conturbava - É este 
labutar constante, sem esperança de melhoria, e a sua doença que me apertam o coração ...

- Tu me encobres alguma coisa. Estás afrontada?

O peito de Luzia arfava descompassado, e seus rijos seios espetavam, em sacudidos golpes 
trêmulos, a delgada camisa.

- Tenho ouvido dizer - continuou ela - que banhos salgados são bons para reumatismo. Se 
pudesse levá-la para as praias... Bastava chegarmos com vida à Barra. Daí para os Patos é 
um pulo. Ficaríamos acostados à gente do meu padrinho José Frederico, que é rico e bom 
para os pobres.

- Tenho medo... Nunca vi o mar. Dizem que é bonito, perigo e traiçoeiro. Inda que fosse 
essa viagem a salvação. Como queres que me mexa? Não vês? Estou impossibilitada de 
andar neste quarto, quanto mais para fazer a travessia deste sertão inclemente! ... Ai! ... 
Deus não quer, filha. São os meus pecados, que me encaranguejam as pernas. Já fiz uma 
promessa a São Francisco das Chagas de Canindé para que ele me pusesse em estado de 
caminhar com os meus pés; e... nada ... Cada vez mais me incham as juntas e se me entortam 
os ossos. . .

Subjugada pelo impossível evidente, inelutável, a moça estraçalhou com as unhas pontudas 
a carta fatal. A mãe tinha razão. Deus não queria. Era forçoso ficar, amarrada àquele poste 
de amor e sacrifício, onde morria, em lento martírio, a mãe adorada, arrostar o perigo 
pressentido, o acinte da paixão do lúbrico soldado. Era formoso ficar exposta ao insulto 
daquela atrevida e grosseira insistência repugnante; e sucumbir, talvez, assoberbada de 
vilipêndio e ultrajada como as outras desditosas, arrastadas pela miséria à crápula abjeta.

Sob os músculos poderosos de Luzia-Homem estava a mulher tímida e frágil, afogada no 
sofrimento que não transbordava em pranto, e só irradiava, em chispas fulvas, nos grandes 
olhos de luminosa trevas





IV




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Quando lhe serenou o ânimo atribulado, teve ímpetos de repelir o insulto com represálias 
violentas, castigando, ela mesma, o insolente, custasse-lhe isto, embora, muita vergonha, 
muito opróbio, ou procurar auxilio na dedicação cega de Alexandre, com a qual sabia poder 
contar para a vida e para a morte; mas, demoveram-na desse passo, ponderações das 
conseqüências de escândalo, um crime possível e a punicão. Não queria arriscar o moço, cuja 
alma impetuosa e forte, parecia adormecida sob aparências de mansidão e doçura, como a 
lâmina de uma faca acenada, escondida em bainha de veludo. Raulino era demasiado 
ardente; tinha o coração na goela e seria capaz de estripulias graves. Demais, por lhe haver 
catado valioso serviço, pareceria exigir a paga com o apelo ao seu concurso. Além desses, 
não tinha um coração amigo onde fosse haurir conselho e procurar o inefável alívio da 
confidência, válvula benéfica para o escoamento das mágoas, pesares e desgostos. As moças 
da mesma idade, ainda não contaminadas pelo vírus pecaminoso, que empestava o 
ambiente, evitavam-na com maneiras tímidas, discreto acanhamento, como não fossem 
iguais na condição e infortúnio. Muitas se afastavam dela, da orgulhosa e seca 
Luzia-Homem com secreto terror, e lhe faziam a furto figas e cruzes. Mulher que tinha buço 
de rapaz, pernas e braços forrados de pelúcia crespa e entonos de força, com ares varonis, 
uma virago, avessa a homens, devera ser um desses erros da natureza, marcados com o 
estigma dos desvios monstruosos do ventre maldito que os concebera. Desgraça que lhe 
acontecesse não seria lamentada; ninguém se apiedaria dela, que mais se diria um réprobo, 
abandonado, separado pela cerca de espinhos da ironia malquerente, em redor da qual 
girava o povilhéu feroz a lapidá-la com chacotas, dictéríos e remoques. Tal se lhe figurava, 
através dos exageros pessimistas, a sua triste situação.

Uma vez, estando ela a banhar-se, depois de cheio o grande pote, na cacimba aberta no leito 
de areia do rio, em sítio distante dos caminhos e aguadas mais freqüentadas, surpreendeu-a 
Teresinha, a rapariga branca e alourada, bem-parecida de cara e bem-feita de corpo, que era 
flexível como um junco, de sóbrias carnações e contornos graciosos.

Estava ainda longe o dia. As barras apenas despontavam no levante em pálido clarão e 
alguns farrapos de nuvens rubescentes. Exposta à bafagem da madrugada, Luzia de pé, em 
plena nudez, entornava sobre a cabeça cuicas d'água que lhe escorria pelo corpo reluzente, 
um primor de linhas vigorosas, como pintava a superstição do povo o das mães-d'água 
lendárias, estremecendo em arrepios à líquida carícia, e abrigado em manto da espessa 
cabeleira anelada que lhe tocava os finos tornozelos. Ao perceber desenhar-se no 
lusco-fusco da nebrina matinal, já perto, o vulto da moça a contemplá-la, soltou um grito de 
espanto e agachou-se, cruzando os braços sobre os seios.

- Não tenha receio, sa Luzia. Sou eu - disse Teresinha, atirando o pote sobre a areia - Vim 
também lavar-me com a fresca. É tão bom, neste tempo de calor, poder molhar o corpo...

- Dê-me a camisa por favor - suplicou Luzia, transida de pejo, apontando para a roupa 
amontoada.

Teresinha não despregava dela os olhos, em êxtase de admirativa curiosidade. Deu-lhe a 
roupa, e, despindo-se sem o menor resguarde, banhou-se rapidamente.

- Você tem vergonha de outra mulher, Luzia? Eu, não. Não sou torta, nem aleijada, graças a 
Deus ...



[Linha 500 de 6979 - Parte 1 de 5]


Vestida a camisa que se lhe amoldou ao corpo molhado, como leve túnica de estátua, Luzia 
não ousava erguer os olhos, tão confusa e perturbada estava.

- Agora sou sua defensora - continuou a outra torcendo os cabelos ensopados - Hei de 
punir por você em toda parte, porque vi com os meus olhos que é uma mulher como eu, e 
que mulherão! ... Sabe? Outro dia estava numa roda conversando sobre moças que não há 
nenhuma honrada para aquelas línguas danadas, Falou-se de você e o Crapiúna, que estava 
ouvindo, disse que, por bem ou por mal, lhe havia de tirar a teima.

- O Crapiúna? - exclamou Luzia com irrepressível terror.

- Sim. Aquele infame soldado, muito metido e apresentado, que anda perseguindo a gente. 
É um gabola para quem não há mulher séria. Não se fie daquele malvado. Conheço muitas 
que ele desgraçou com partes de promessa de casamento; e não teve coragem de dar-lhe um 
pedaço de pano para fazer uma saia. A mim andou ele a afrontar com o anelão de ouro que 
traz no dedo, como isca para as tolas. Eu não sou mais moça, confesso a minha desgraça, 
mas não me sujo com semelhante desalmado.

Luzia ouvia calada, com os olhos fitos na cacimba, onde a água marejava lentamente.

- Dizem que é criminoso. Muito provocante e atrevido, outro dia quase teve uma pega com 
o Alexandre por causa de umas liberdades, que quis tomar com a Quinotinha.. Não foi por 
ciúme que o outro avançou em defesa da menina, uma criança inocente, coitadinha, que 
ainda não desceu o embainhado da saia. Só visto se acredita. Era preciso ter cabelos no 
coração para fazer o que ele fez e ter sangue de barata para suportar tamanho desaforo.

- Então o Alexandre?! ... 

- Avançou para ele que nem uma fera, e o cabra ficou branco como um defunto. Todo o 
homem de más entranhas, à traição, é, cascavel, mas, peito a peito, é medroso. Alexandre já 
andava com ele de olho por sua causa ...

- Por mim?

- Ora, eu sei que ele gosta de você, mas não tem coragem de se declarar. Olhe, minha 
camarada, procurando com uma vela acesa, não encontrará homem de bem igual a ele. É 
pessoa de consideração e procedente de boa família. Dizem que deixou moradas de casa e 
uma fazenda nos Crateús; mas essa desgraça da seca acabou com tudo e o obrigou a andar 
trabalhando para arranjar um bocado para comer ... Ah! também eu já tive muito de meu e 
agora vivo nesta miséria. Quando saí de casa com o Cazuza, meus pais, graças a Deus, ainda 
possuíam muita farinha, muito milho e muito arroz, na despensa, não falando nas 
matalotagens. Depois, andamos vagando pelo sertão como casados, até que o perdi. Morreu 
de bexigas, o pobre ... Eu saíra de casa com a roupa do corpo. Vi-me sozinha no mundo, 
sem ter com que comprar uma tigela de feijão ... Fiz então, o que me mandou a minha ruim 
cabeça... E por aqui ando como um molambo, sem uma criatura que se doa de mim... Ainda 
hei de contar-lhe a minha vida.

Teresinha limpou os olhos com as costas da mão, e suspirou. Sentada, em desalinho, traçava 
na areia úmida, figuras cabalísticas, entremeados de letras que logo apagava, como se 
simbolizassem importunas e saudosas recordações da felicidade, para sempre perdida.


[Linha 550 de 6979 - Parte 1 de 5]



A cacimba transbordava. Os potes estavam cheios. Luzia torcia em rodilha um trapo de 
antiga toalha, para equilibrar o seu sobre a cabeça, esperando que Teresinha lhe restituísse a 
cuia com que se banhava.

Nisto ouviram vozes e tropel humanos. Teresinha vestiu-se às pressas. Era o triste cortejo da 
faxina diária da cadeia. Dous presos, ligados pelo pescoço por comprida corrente de ferro, 
carregavam pendurada de um caibro, polido pelo uso, a grande cuba contendo os dejetos da 
véspera, para despejá-los, longe da cidade, à margem do rio, nas vazantes onde, em tempos 
prósperos, medraram melões e melancias. Acompanhava-os uma escolta de soldados, da 
qual se destacou Crapiúna, que se dirigiu às duas moças com maneiras de afetada 
severidade.

- Então, suas vadias! Estão a sujar a água que a gente bebe? ... Corja de porcas... estas 
retirantes ... Ai, Jesus! ... Não tinha reparado na sa dona Luzia, milagrosa santa dos meus 
olhos pecadores...

- Deixe a gente sossegada, seu Crapiúna - atalhou Teresinha.

Siga o seu caminho e não se importe com o que não é da sua conta...

- Não estou falando contigo, tábua de bater roupa. O meu negócio é com esta feiticeira 
soberba que furtou meu coração...

- Você diz isto - replicou Teresinha - é por estarmos aqui sozinhas. Soldado relaxado...

- Olha - retrucou Crapiúna enfurecido - Toma a bênção ao furriel que está ali na escolta. Se 
eu não estivesse de serviço te ensinava quem é relaxado, cachorra....

- Cachorra é tua mãe, cabra safado...

A esta injúria Crapiúna cerrou os punhos, num gesto bruto de ameaça; mas , à chamada do 
furriel, teve de partir, dirigindo à moça uma praga obscena.

- Deixa estar que me pagarás. Esta não caiu no chão.

Voltando depois para Luzia, trémula e confusa, inanida de surpresa e vergonha, 
acrescentou, requebrando os olhos congestionados: 

- Adeus, meu bem ... Tenha pena de seu mulato... Me responda; faça uma fezinha para me 
consolar o peito, sua ingrata... Ai, ai, coração!...

Luzia continuava a preparar, automaticamente, a rodilha, não ousando, erguer os olhos para 
o sinistro homem.

- O demônio te carregue, peste - resmungou Teresinha quando Crapiúna se reuniu à escolta 
- Tu só prestas para carregar porcaria de preso. Por estas e outras é que eu não ando de 
mãos abanando. Era encrespar-se para mim aquele excomungado, metia-lhe no bucho este 
canivete até o cabo.. .



[Linha 600 de 6979 - Parte 1 de 5]


- E tinha corarem? - perguntou Luzia encarando na franzina moça e na fina lâmina da arma, 
que ela trazia oculta no cós da saia.

- Ora, ora, ora! ... Fisgava-o sem dó nem compaixão. Não me importava de ser presa, nem 
tenho a vida para negócio ... desgraça por desgraça... Ah! minha camarada, já sofri tudo de 
ruim deste mundo; passei por vexames e desgostos... Só lhe contando isso por miúdo ... 
Deixe estar que os desaforos daquele cabra miserável não caíram no chão. Paga-me mais 
cedo ou mais tarde, tão certo como chamar-me Teresa de Jesus...

- Ferir, matar um homem! ... Seria horrível.

- Qual horrível, qual nada. Já vi gente morrer à minha vista. Não foi uma nem duas criaturas. 
Tivera eu a sua força, não precisaria de arma: quebrava-lhe a cara safada que ficaria a panos 
de vinagre. Quando ele me dissesse alguma liberdade, dava-lhe tamanho tabefe...

- Vamos que são quase horas de ir para a obra... Ah! nem me lembrava que hoje é dia santo. 
.. Esta minha cabeça...

- Olhe para mim, Luzia; mire-se no meu espelho Eu já lhe quero bem, como parente minha, 
por isso falo-lhe assim. Veja como estou pagando os meus pecados; veja a minha desgraça e 
a quanto estou sujeita...

- É pena, você, uma moça branca, andar assim na vida ...

O céu pálido clareava, e a aurora, que irrompia, punha nas coisas o rúbido fulgor das suas 
pompas. Ranchos de mulheres e de meninos macilentos se endireitavam à cacimba; e, 
falando e rindo, os pequenos, quase nus, sacudidos por quintos de tosse rouca, levavam 
grandes cabaças para colherem o precioso líquido, ainda nas entranhas da terra ressequida e 
flagelada.





V



Mal restabelecida da comoção do encontro com Crapiúna, Luzia sentia-se humilhada pelos 
grosseiros galanteios que ele lhe dirigira sem o menor rebuço, com desabrida petulância e 
desenvoltura sensual, como se ela fora uma dessas desgraçadas, cujo acesso não é já 
resguardado pelo prestígio da virtude. Pouco atenciosa à incessante tagarelice de Teresinha, 
e remordida pela afronta, meditava na turra de Alexandre com o soldado, persuadida de 
que a defesa de Quinotinha fora o pretexto para a explosão do ódio latente. Seu coração 
estremecia, vacilante, à idéia de um conflito entre os dois homens, e o júbilo de sentir-se 
amparada por dedicação superior a todos os sacrifícios.

E flutuava nesse consolador eflúvio de reconhecimento, arrebatada à região dos sonhos, das 
coisas ideais, sobranceiras ao pélago da tristeza e sofrimentos humanos.



[Linha 650 de 6979 - Parte 1 de 5]


Quando chegou a casa, e depôs o grande pote sobre as três garras de uma forquilha de 
sabiá, fincada no solo, a mãe, sentada à rede armada a um canto do quarto, gemia, à 
surdina, em atitude de vítima resignada ao martírio da implacável moléstia. 

- Sua bênção, mãezinha?

- Bênção de Deus, filha. Vens tão cansada. Teimas em carregar água nessa jarra... Estás a 
botar a alma pela boca...

- Não é o peso do pote ... São pesares...

- Hoje é dia santo. Achava bom ires à missa ...

- Já fiz as minhas orações, mãezinha. O meu lugar - Deus me perdoe - é aqui a seu lado, 
tratando-a, a ver se podemos deixar logo esta terra.

- O quê!! ... A terra não tem culpa do que padecemos. Admira de pensares ainda em 
semelhante coisa. Desengana-te, filhinha da minha alma. Havemos de ficar e talvez 
morrermos aqui, quando Deus for servido ...

- Também, mãezinha, não faz caso dos remédios, que têm custado um dinheirão. Se tomasse 
de verdade os da receita do doutor Helvécio... Olhe ele quase sarou a mãe da Grabina. 
Muito mais doente e com moléstia ruim, teria ficado boa, se não se metesse com meizinhas e 
feitiçarias ensinadas. Pelo menos conseguiu viver muito...

- Porque a hora não era chegada.

- Só queria que melhorasse. Era capaz de carregá-la nas costas, como criança de peito, até à 
Barra. Tenho visto mulheres, mais franzinas que eu, conduzindo ao colo filhos crescidos, 
quais rapazes, doentes, ou meio mortos. Tenho fé em Deus que me dobraria as forças para 
fazermos, em paz e salvamento, a viagem. Depois Alexandre havia de ir conosco e nos 
ajudaria, ao menos, carregando os nossos teréns ... Pensar que em cinco dias poderíamos 
estar na praia, livres deste inferno ...

Enquanto tentava demover a mãe a empreender a viagem, a moça torcia as madeixas dos 
fartos cabelos negros, embebidos d'água, até secarem à pressão de suas mãos, mãos 
delicadas de mestiça, pequeninas e elegantes. Enrolado no alto da cabeça o cabelo, que ela 
tratava carinhosamente, passou aos cuidados domésticos matinais: atiçar o fogo, preparar o 
café e uma sopa com grandes bolachas duras, quebradas em pedaços miúdos.

Nisto ouviu um forte silvo de fadiga. Era Alexandre que chegava, trazendo provisões em 
um uru, funda bolsa de malha tecida com palhas de carnaúba.

- Bom dia, sa Luzia. Como passou tia Zefinha? - disse em tom prazenteiro.

- Deus te abençoe, meu filho! - gemeu a velha com esforço. 

- Passei por uma madorra; mas, à primeira cantada dos galos, despertei e não houve meio de 
tornar a pegar no sono.



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- Que há de novo? - inquiriu Luzia.

- Ouvi estarem falando, na casa da Comissão, que o doutor José Júlio deu ordem para 
facilitar a saída do povo. Quem quiser embarcar deve procurar a Barra ou o Camocim, onde 
há vapores para conduzir a gente. Quem quiser ficar tem trabalho na estrada de ferro e nos 
açudes. Mas, assim mesmo, não se pode dar vencimento ao potici de povo, que vem 
derramado por esse sertão a fora. Disse-me o capitão Marçal que vão principiar as obras do 
cemitério novo e da estrada para a Meruoca. Já estão engenheiros medindo a ladeira da 
Mata-Fresca. Era o caso de irmos nos trabalhar na fresca da serra, onde ainda há 
olhos-d'água vivos. Pelo meu gosto já não estava mais aqui.

- Quem impede? - perguntou Luzia, ocupada em dar a sopa à mãe.

- Ninguém - respondeu Alexandre surpreendido pela inesperada pergunta, feita em tom de 
indiferença. Ninguém, nada me impede... Mas a gente nem sempre faz o que quer. Muita 
vez a cabeça vira para um lado e o coração para outro. Quando morreu minha mãe e vi-me 
só no mundo, estive em termos de assentar praça, porque quando um homem é soldado vira 
outro, fecha a alma e não se pertence mais. Estava maginando nisso, em me afastar da terra 
da sepultura, onde descansava a minha defunta velhinha, quando topei com você, sa Luzia, 
servindo no trabalho da cadeia. Por sinal que, nessa ocasião, lembra-se? a maltratavam. Era 
uma canzoada de mulheres e meninos, gritando: Olha a Luzia-Homem, a macho e fêmea! O 
povo todo corria de morro baixo e eu também fui ver o que era. Você vinha subindo, 
trazendo nos braços Raulino Uchoa, quase morto, ensangüentado e coberto de poeira. 
Contou-me, então, o Antonio Sieba, pai daquela moça bonita, que canta como um canário, o 
que se havia passado. O Raulino apostara derribar, a toda a carreira, um boi pelo rabo. Na 
verdade o homem corria como um veado e, era pegar na saia da rês e virá-la, na poeira, de 
pernas para o ar; mas, naquele dia, foi caipora; falseou-lhe o pé; o boi voltou-se como um 
gato e mataria o pobre diabo se, dentre o povo, que disparava espantado, não surgisse uma 
moça afoita e destemida que agarrou o bicho pelas galhadas e o sujicou que nem um cabrito.

- Não valia a pena lembrar isso.

- O capitão João Braga, aquele coração de oiro, mandou recolher o ferido à casa da 
administração; e, voltando-se para mim, disse-me: Seu Alexandre aliste esta moça para 
trabalhar e dê-lhe cinco mil réis como molhadura pelo ato de coragem. Você não quis 
receber o dinheiro. Ficou até meia estomagada..

- Por força ... Eu não devia receber pagamento pelo que fiz por caridade.

- Eu tomei por soberba. Cem anos que viva, terei sempre diante dos olhos e do pensamento, 
a sua figura, de cabelos soltos, rompendo a multidão, com o Raulino nos braços, como se 
fora uma criança. Lembrava-me um registo do Anjo da Guarda, levando a alma de um 
inocente para o céu.

Luzia ouvia-o complacente e admirada, porque Alexandre, de ordinário tão retraído e 
acanhado, estava, nesse dia, expansivo, e loquaz.

- Desde, então - continuou ele - não pensei mais em assentar praça, nem abandonar esta 
terra. Quando sube que tinha mãe e conheci a tia Zefinha, meu coração se abriu consolado, 
como se houvesse ressuscitado a minha defunta mãe, que Deus haja em glória.


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Você hoje - Observou a velha, amparando da luz os embaciados olhos, com as mãos, 
trêmulas e mirradas - trouxe o uru cheio! ...

- O pobre tem seu dia...

E afastou-se para entregar as compras a Luzia, esvaziando o uru que deixara sobre o jirau do 
alpendre.

- Aqui tem uma libra de carne fresca e um corredor, uma quarta de toicinho, afora a ração 
do governo. A farinha é meia grossa, mas tem muita goma.

- Ninguém dirá, com semelhante fartura, - gracejou Luzia - que somos retirantes.

- Agora - disse-lhe Alexandre, baixando a voz, tímido e comovido - tenho uma coisa para 
você; um mimo que me trouxe um camarada meu da Meruoca.

E tirou do bolso interior da jaqueta de brim pardo uma laranja, onde estava plantado um 
cacho de cravos sanguíneos e cheirosos.

Aqueceu-se o rosto moreno de Luzia, como inundado de um fluxo de sangue abrasado. 
Seus olhos negros brilharam em fugaz eflúvio de prazer fitando-se no fruto e nas rubras 
flores sensuais, preciosas jóias da natureza avara naquela quadra de desolação. Ela as tomou 
a duas mãos, meigamente; hauriu com voluptuoso anseio o perfume dos cravos; e, mal 
articulando as palavras, dirigiu-se à mãe:

- Aqui tem, mãezinha, um presente de Alexandre. Tome a laranja; eu fico com os cravos. 
Que bonitos!...

E, com gestos de casquilhice infantil, cravou-os nas ondas do cabelo. Depois, voltando-se 
para Alexandre, que não ousava contemplá-la, lhe disse à puridade:

- Muito agradecida. Mas ... estou zangada com você ...

- Comigo! ? ...

- Sim. Teresinha contou-me a sua briga com Crapiúna.

- Não houve nada. Juro-lhe à fé de Deus! Estávamos na casa da Comissão: eu no meu lugar 
fazendo a relação da gente que era demais; ele, numa reinação, intimando com as mulheres. 
Chegou a Quinotinha em procura da ração do pai, que desmentira um pé; e o desaforado 
entrou a bulir com ela até fazê-la chorar. Aquilo foi me inchando no coração; perdi a 
paciência, e não me pude conter. Meti os pés; cresci pra cima do cabra, e disse-lhe por aqui 
assim: "Se o senhor não respeita a farda para provocar uma menina inocente, há de respeitar 
um homem!..." Ele estremeceu; quis se endireitar pra mim, mas eu não o deixei esfriar, e 
acrescentei: "Uma pouca vergonha que a gente não se atreve... Tamanho homem e, de mais a 
mais, soldado, andar aqui todos os dias, que Deus dá, com desaforos, até com meninas 
donzelas! Fique sabendo que não me mete medo; não me vou queixar ao sargento 
Carneviva, nem ao Comandante!..." O mulherio abriu em roda; e o Crapiúna, vendo que eu 
estava decidido para o que desse e viesse, murchou; ficou fulo de raiva e foi saindo, lá ele, 


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por estas palavras: "Está bom! Não quero baticum de boca comigo..." E o povaréu caiu em 
cima dele com dictérios que faziam uma zoada doida: - Olha o valentão! ... Meteu o rabo 
entre as pernas!... Cabra frouxo!... Vi que ele ficou danado, mas, nem como coisa, continuei 
sossegado o meu serviço. Quando o capitão José Silvestre soube do caso, disse-me que eu 
tinha feito muito bem.

- Que tinha você de comprar briga ...

- A gente não faz essas coisas por querer. Quando dá fé está feito... Tal qual você, quando 
tirou o Raulino debaixo do boi... O coração não se governa, nem pede licença. para bater...

- Mas você já estava de ponta com ele ...

- Andava, falo a minha verdade. E não era para menos ver aquele safado, com partes de ser 
cangaceiro e criminoso, andar intimando com Deus e o mundo. Todo o gabola é mofino ...

- Faça-me um favor...

- Que não farei eu por você, Luzia?...

- Não se meta mais com a vida do Crapiúna ...

- Está dito!... Por essas e outras é que eu desejava trabalhar fora daqui...

- Ninguém está livre de uma traição...

- Ah! Bem se vê que ele tem cara de cascavel de tocaia...

- Evite; evite aquele homem, Alexandre... Eu lhe peço por alma de sua mãe...

- Juro!... - afirmou o moço, solene, erguendo-se e estendendo a destra, com um gesto 
resoluto e sincero.

- Confiem em Deus, minha gente - observou a velha, que do quarto os ouvia.

- Não há mal que sempre dure. Ele é pai de misericórdia. Há de ter pena de nós e desta 
terra...

- Se nós dois - disse Luzia, após alguns momentos de meditação - botássemos mãezinha 
numa rede e a carregássemos até a Barra do Acaracu?

- E tu a teimares, filha...

- Eu era muito homem para fazer isso - respondeu Alexandre - mas vinte léguas, léguas de 
beiço, muito puxadas, por uma estrada de águas difíceis e com esta soalheira!?...

Luzia não replicou.

- Mais fácil seria - continuou ele, irmos trabalhar na obra da ladeira. Já estou com uma 
casinha de olho: a que fica quase defronte da Cova da Onça. Daqui até lá levamos a tia 


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Zefinha de um só fôlego...

- E ficaremos sozinhas naquelas brenhas? - ponderou Luzia.

- Se não levassem a mal eu ficaria morando com vocês... Sempre é bom ter homem em 
casa...

- E as más línguas?... Acha pouco o que já rosnam de nós? ...

- Então não sei como há de ser... Só se...

Alexandre estacou enleado, não ousando externar a idéia que lhe ocorrera...

Recobrado o ânimo, titubeou, a meia voz, trêmulo quase comovido:

- Só se... nós... nos casássemos...

Luzia surpreendida pela proposta. estremeceu, corando.

No mesmo instante, passava pelo terreiro, rente à casa, um magote de mulheres, com trajes 
domingueiros, grazinando em desbragada conversa.

- Que lhes dizia eu?... Vote!... Já estão bem principiados no namoro! - exclamou uma delas 
indicando, com um gesto do mento, Luzia e Alexandre, transidos de pejo, como 
delinqüentes apanhados em flagrante crime de amor.

O grupo desapareceu correndo e tagarelando, aos empurrões e palmadas, com maneiras 
desenvoltas. Dominava o murmúrio de risos e chacotas grosseiras, a gargalhada estridente e 
sarcástica de Romana, a lúbrica, a roliça e quente cabocla de dentes pontiagudos.





VI

Setembro de 1878 ia em meados, e não apareciam no céu límpido, de azul polido e 
luminoso, indícios de auspiciosa mudança de tempo. Não se encastelavam no horizonte, os 
colossais flocos a estufarem como iriada espuma; nem, pela madrugada, cirros, penachos 
inflamados, ou, em pleno dia, nuvens pardacentas, esmagadas em torrões. À noite, 
constelações de rutilante esplendor tauxiavam o firmamento, e a lua percorria, melancólica, 
a silenciosa senda.

Como que se percebia no abismo do espaço infindo, a eterna gestação do cosmos, operoso e 
fecundo, em flagrante criação de mundos novos. E, na gloriosa harmonia dos astros, na 
expansão soberba da vida universal, a terra cearense era a nota de contraste, um lamento de 
desespero, de esgotamento das derradeiras energias, porque o sol sedento lhe sorvera, em 
haustos de fogo, toda a seiva.

Olhares ansiosos procuravam, em vão, o fuzilar de relâmpagos longínquos a pestanejarem no 


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rumo do Piauí, desvelando o perfil negro da Ibiapaba. Nada; nem o mais ligeiro prenúncio 
das chuvas de caju.

O sertão ressequido estava quase deserto: campos sem gados, povoações abandonadas. E a 
constante, a implacável ventania, varrendo o céu e a terra, entrava, silvando e rugindo, as 
casas vazias, como fera raivosa, faminta, buscando e rebuscando a presa, e fazendo, com 
pavoroso ruído, baterem as portas de encontro aos portais, num lamentoso tom de 
abandono.

As pastagens de reserva, nos pés de serras, protegidas por espessa facha de catingas 
impenetráveis, onde se criavam famosos barbatões bravios, haviam sido devoradas ou 
estruídas e pesteadas pela acumulação de rebanhos em retiradas numerosas. E, à grande 
distância, sentia-se o fedor dos campos inficionados por milhares de corpos de reses em 
decomposição.

Não havia mais esperança. Os horóscopos populares aceitos pela crendice, como infalíveis: a 
experiência de Santa Luzia, as indicações do Lunário Perpétuo e a tradição conservada 
pelos velhos mais atilados, eram negativas, e afirmavam uma seca pior que a de 1825, de 
sinistra impressão na memória dos sertanejos, pois olhos-d'água, mananciais que nunca 
haviam estancado, já não merejavam.

Os socorros, distribuídos pelo Governo, não pcdiam chegar aos centros afastados, por falta 
de condução, ou eram os comboios de víveres assaltados por bandos de famintos, 
malfeitores e bandidos, organizados em legiões de famosos cangaceiros.

Em tão aflitiva conjunção, era natural que os retirantes, por instinto de conservação, 
procurassem o litoral, e abandonassem o sertão querido, onde nada mais tinham que perder; 
onde já não podiam ganhar a vida, porque à miséria precedera o fatal cortejo de moléstias 
infecciosas, competindo com a fome e a sede na terrível faina de destruição.

Luzia encontrara em Sobral, abrigo e fáceis meios de subsistência; mas pressentia iminente 
perigo do capricho ou paixão brutal de Crapiúna. Era forçoso procurar outro refúgio, e por 
isso espreitava, ansiosa, os mais ligeiros sintomas da moléstia da mãe, sinais de melhora, 
para empreenderem a anelada viagem aonde a distância a preservasse dos contínuos sustos e 
vexames afrontosos. Não confiava no projeto de mudança para a ladeira da Mata-Fresca, 
dependente de condição, que não resolvera ainda aceitar, além de que ficaria a duas léguas, 
apenas, da cidade.

Já não ia, diariamente, ao trabalho. Ficava em casa, tratando com desvelado carinho, a pobre 
mãe, cada vez mais trôpega. Felizmente, o capitão João Braga lhe abonava as rações, e 
Alexandre não se descuidava de repartir com elas, quanto ganhava, apesar da relutante 
recusa, oposta à sua espontânea generosidade. Ele vivia folgadamente, porque passara de 
apontador a fiel do armazém, onde havia grande depósito de mantimentos e todos os 
valores do almoxarifado. Tinha de mais para si, e doía-lhe no coração não poder aliviar as 
necessidades dos pobres, seus companheiros de infortúnio.

Um dia, pela manhã, encontrou Luzia desanimada: a mãe passara mal a noite, inquieta, 
afrontada, como se lhe apertassem o peito ou não houvesse bastante ar respirável no estreito 
quarto.



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- Deus não quer, filha - dizia a velha com o seio ofegante e mal articulando as palavras - 
Deus não quer... Seja feita a sua ... santa... vontade...

- Mãezinha tem tido isto tantas vezes - ponderava Luzia, afetando serenidade - Isto é 
puxado... Cheire este frasco...

- Parece que tenho ar encausado... aqui... Olha, sinto uma bola... qualquer coisa que me tapa 
o fôlego. Abre bem a porta... Abana-me... Se eu tomasse o vomitório de papaconha...

- Corno está, tia Zefinha? - inquiriu Alexandre, chegando à porta do quarto.

- Como quem está se acabando... Ai Jesus!... Que aflição!...

- Por que não toma aquela garrafa que o doutor receitou?...

- Tenho medo...Disse-me a Chica Seridó que tem veneno... doreto...

- Então ela sabe mais que o doutor?!... Tome, experimente... 

- Ah, Alexandre; já pedi, roguei, não sei mais que fazer para mãezinha tomar a receita - 
observou Luzia, quase em lágrimas.

- Há de ser o que Deus for servido...

- Mas tome sempre, tia Zefinha. Faça-me esta vontade. É para seu bem...

- Enfim - concluiu a velha condescendendo - vá lá... No meu estado, só um milagre... Não 
quero que voce diga que não o atendi antes de morrer...

E tomou uma colher da poção, administrada pela filha.

- Aqui está, na garrafa - disse Alexandre repetindo o que estava escrito no rótulo - uma 
colher das de sopa antes de cada refeição. Quando voltar do serviço, quero encontrar 
vosmecê aliviada. Adeus, Luzia! O sol já está alto. Vou andando... E eu que devia estar no 
armazém às seis em ponto...

Desde o dia em que foram alvo das chufas da malta de vadias, capitaneadas pela Romana, 
Alexandre apenas uma vez pedira a Luzia, com muitos rodeios e acanhamento, resposta à 
proposta de casamento. Ela, porém, nada lhe respondera, limitando-se a, com um gesto de 
desânimo, indicar-lhe a mãe, como se a doença dela fosse invencível obstáculo.

Ocultava ao moço, resignado, nutrido de esperanças, o haver recebido cartas de Crapiúna, 
qual mais apaixonada, qual mais recheada de expansões de amor, acrisolado pela resistência; 
todas salpicadas de alusões iradas ao outro mais afortunado, e ameaças de não poder sofrear 
os estos de ciúme que o devoravam, ou de acabar com a própria vida, porque para ele só 
havia Deus no céu e ela na terra.

Ao menino, que lhe levava as cartas, Luzia respondia invariavelmente: - Diga esse homem 
que me deixe sossegada, que não se meta com a minha vida! Mas, por um impulso de 
curiosidade, muito humano e sobretudo muito feminino, tivera a fraqueza de lê-las, o que 


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ela considerava uma vergonha, senão crime injustificável. Também não ousara contar a 
Alexandre que o soldado havia aparecido várias vezes na residência. Uma noite passava ele 
com o Belota e tivera o atrevimento de fazer-lhe uma serenata cantando à viola, quase no 
terreiro da casa, modinhas e canções eróticas, que terminavam nesta saudosa endecha:



"Vou me embora, vou me embora,

Como fez a saracura;

Bateu asas, foi cantando:

Mal de amores não se cura!..."



Ouvindo-o, Luzia tremia de indignação e terror, suspirando de alívio, quando se sumiu ao 
longe, o pesqueiro batido, acompanhando a voz fanhosa de Belota, a cantar:



"Quem quiser ser bem-querido,

Não se mostre afeiçoado, 

Que o afeto conhecido,

É sempre o mais desprezado."



- Não sei como essa gente ainda tem coragem de cantar - gemia a velha Zefa - É uma falta 
de coração...

Pouco depois da partida de Alexandre, prometendo voltar cedo com o doutor Helvécio 
Monte, surdiu o pequeno mensageiro com uma, carta, que deixou sobre o pilão, por ter 
Luzia recusado recebê-la. Entretanto não pôde ainda resistir à curiosidade, e reincidiu na 
culpa nefanda de abri-la. E leu:

"Minha Santa Luzia - Esta tem por fim unicamente, dizer-lhe que se há de arrepender da 
sua ingratidão e quem lhe diz isto é o seu amante fiel até a morte - Crapiúna."

- É preciso acabar com isto, custe o que custar, - murmurou a moça inflamada de cólera - 
Este malvado me há de desgraçar...

Passou o dia preocupada, e procurando espairecer com desvelos à mãe, mais acalmada com 
a poção de iodureto de potássio, o venenoso remédio, que, na opinião da Seridó, fazia 
apodrecerem os ossos, caírem os dentes e pôr o estômago em carne viva, quando seria mais 
eficaz a purga de mel de abelha e um emplastro de sabão da terra com um pinto pisado vivo; 


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ou com o vomitório de cardo-santo, chá de erva-doce para desempachar o ventre, e raiz de 
pega-pinto por causa da retenção de ourinas.

- Com esses remédios sarara a defunta Desidéria - afirmava a feiticeira - que padecia de um 
puxado com apertos do coração e uma dor que lhe tomava o fôlego, respondia - lá nela - 
nas cruzes e alastrava pelo braço esquerdo, que às vezes ficava esquecido. Vivera a enferma 
muito tempo, trabalhando como uma negra, apanhando sol e chuva; e, se não fora um 
ataque violento que não deu tempo para nada ainda estaria vivendo, com a graça de Deus. 
Remédio de botica havia levado muita gente desta para melhor vida.

Luzia inquietava-se com a demora de Alexandre, que era pontual à hora do jantar, servido 
sobre uma tosca mesa improvisada com uma tampa de caixão de pinho, apoiada em quatro 
forquilhas.

O sol descambava, deixando as cumeadas áridas da serra do Rosário, quando apareceu 
Teresinha quase a correr e de semblante apavorado.

- Que foi? - perguntou Luzia sobressaltada - Que aconteceu? Que é do Alexandre?...

Teresinha tomou-lhe do braço, levou-a para fora do alpendre e disse-lhe, com voz sacudida 
de tristeza:

- Uma desgraça! ...

- Brigaram? - inquiriu Luzia ansiosa, encarando no semblante da moça ruiva para lhe 
aprender a misteriosa notícia.

- Imagina que eu voltava da obra e, quando dei por mim, foi com a gralhada de Romana, 
aplaudindo com as parceiras. Aquelas não-sei-que-diga riam como doidas varridas. Uma 
dizia: Foi bem feito! A outra resmungava: Bulir com o de-comer dos pobres!... Que 
miséria!... Se fosse só feijão - grazinava a deslambida da Romana - meu Deus, 
perdoai-me... Passou as unhas no dinheiro. Quem havera de dizer - rosnava a Joana 
Cangati, aquela sirigaita, que tem o bucho caído - que aquele sonso...

- Mas... que aconteceu, mulher de Deus?

- Cheguei-me a elas e sube então... Imagina como fiquei estatelada, e caí das nuvens quando 
me disseram que Alexandre estava preso...

- Preso!... - exclamou Luzia aterrada - Preso?! ... Preso por quê?...

- Foi o que perguntei. Então a avoada da começou a caçoar: Ora o moço precisava 
preparar-se para o casório; não teve dúvidas; passou a mão...

- Mas... é mentira!...

- Eu também tenho Alexandre em conta de pessoa incapaz de se sujar com o alheio; mas a 
verdade é que foi preso e lá está, na casa da Comissão, com o Delegado...

- É impossível, Teresinha. Você não acha que Alexandre é incapaz de tamanha miséria?...


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- É o que lhe estou dizendo, minha camarada. Está preso e não tem quem puna por ele: 
todos o acusam, porque tinha a chave do armazém; apareceu hoje fora de horas...

- Oh! Meu Deus! Era só o que faltava! Juro que é falso! Caia eu morta, se não tenho certeza 
do que digo.

E, dirigindo-se, firme e resoluta, ao quarto, abrigou-se no amplo lençol branco, dizendo à 
mãe, surpreendida pelos modos agitados. 

- Volto já, mãezinha... É um instantinho ... Teresinha fica ...

Sem atender às observações da velha, passou rápida ao alpendre, e suplicou:

- Você faz companhia àquela pobre... minha amiga. Faça-me esta esmola pelo amor de 
Deus...

- Que vai fazer?

- Não sei ... Deixe-me ...

Com um movimento violento desvencilhou-se de Teresinha, que tentara detê-la, e partiu em 
desvairada corrida.





VII

Além da habitual aglomeração de retirantes na rua do Menino Deus, à porta do armazém da 
distribuição de, socorros, algo havia de extraordinário, a julgar pelos modos assustadiços, os 
olhares de maligna curiosidade do mulherio, que se acotovelava aos empuxões para observar 
o que se passava no interior, onde estavam reunidos os membros da Comissão, o delegado 
de polícia e o promotor público. Dois soldados, Belota e Cabecinha, guardavam a porta, 
com ordem de vetar a entrada a quem quer que fosse. Crapiúna girava entre o povilhéu, 
contendo, com maus modos, os exaltados, que protestavam contra a demora da distribuição 
das rações, principalmente as mulheres que haviam deixado em casa filhos pequenos, sem 
um grão de farinha para fazer um mingau.

- Cessa rumor! Cambada - intimava Crapiúna, com a costumeira impostoria - Vocês ou 
ficam quietos e calados ou arribam daqui. Em fariscando comida, ficam logo assanhadas...

E continuava a ronda, sob um chuveiro de imprecações e motejos, que a sua excessiva 
grosseria provocava.

Os cidadãos incumbidos pelo Governo da penosa tarefa de distribuir socorros, 
desempenhavam com excepcional e caridosa dedicação, os seus deveres, mantendo o mais 
escrupuloso zelo e probidade na administração do serviço. Não houvera ainda um caso de 
muamba, coisa muito vulgar em outros centros de afluência de retirantes, nos quais se 


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explorava escandalosamente a miséria, e se desviavam, para serem vendidos por excessivo 
preço, os víveres destinados aos infelizes famintos. Era, pois, natural que, ciosos de tão 
honrosos precedentes, ficassem muito impressionados com o roubo de gêneros e de 
duzentos mil réis em dinheiro, denunciado, naquela manhã, pelo almoxarife.

A porta do armazém fora encontrada aberta, sem o menor vestígio de violência, caixas com 
fazenda abertas e a gaveta que continha o dinheiro arrombada. Estavam bem patentes os 
indícios do crime, pegadas, do ladrão impressas na poeira, pingos de velas de carnaúba 
sobre as caixas e o instrumento, empregado para forçar a gaveta, um grande formão de 
carpinteiro.

Quem seria o audacioso criminoso? O nome de Alexandre, pronunciado por lábios 
anônimos, no meio da turba, foi logo envolvido pela sinistra atmosfera da suspeita. Ele 
guardava as chaves do armazém; era empregado de inteira confiança, conquistada pelo mais 
irrepreensível procedimento, e os mais abonados precedentes; mas não se podia eximir da 
responsabilidade do fato, senão por desídia, por falta de vigilância. Demais, naquele dia, ele 
sempre pontual, chegara tarde, notando-se-lhe no semblante profunda perturbação ao 
encontrar a porta aberta, e o almoxarife, que o interrogava com o olhar severo. Não pudera, 
no primeiro momento, se justificar ou explicar as circunstâncias que o denunciavam. 
Indicações vagas, circulando na massa de retirantes, aludiam a fatos que davam corpo às 
suspeitas. Ele estava para casar; pretendia deixar a cidade; era bem possível que a paixão por 
Luzia-Homem o alucinasse ao ponto de arrastá-lo a tamanha desgraça. Por outro lado, 
alguns amigos que o não abandonaram na hora do infortúnio, alegavam que, tendo as 
chaves, não necessitaria de deixar a porta aberta, apenas encostada, recorriam aos 
precedentes de porte ilibado, a doçura de caráter, maneiras de pessoa bem-ensinada e de 
boa procedência.

Entre os pró e contra, prevaleceu o depoimento de Crapiúna, afirmando haver visto, à 
meia--noite, mais ou menos, um vulto com uma trouxa volumosa subir apressadamente a rua 
na direção da igreja. Não jurava que fosse Alexandre, por não ter, em consciência, absoluta 
certeza, e para que não dissessem que o acusava por andar enticado com ele; mas a verdade 
é que tinha o mesmo andar e a mesma estatura. Não o perseguira por não lhe passar, então, 
pela cabeça, a idéia de um crime tão vil. Belota confirmava, em todas as minúcias, a história 
do camarada, protestando todavia, que, até à véspera, seria capaz de meter a mão no fogo 
por tão bom moço; mas... a ocasião fazia o ladrão...

Alexandre foi interrogado. Estava tão abatido pela comoção, que fez declarações 
incongruentes, contraditórias e inverossímeis, nem pôde explicar, de modo plausível, a 
demora. Acossado pelas questões da autoridade, limitava-se a protestar com voz 
angustiada:

- Juro que sou inocente, seu Delegado. Eu nunca me sujei com o alheio. Antes me secassem 
as mãos e me faltasse a luz na hora da morte!

Continuava o interrogatório, aliás conduzido com imparcialidade complacente, quando a 
audiência foí interrompida por estranho rumor, gritos e imprecações ameaçadoras, 
estrugindo na rua. Aquecidas as faces pela fadiga da caminhada, os grandes olhos 
lampejantes de chispas fugitivas e o traje em desalinho, Luzia penetrou nos densos magotes 
humanos, que lhe embaraçavam a passagem, com ímpeto irresistível; e foi abrindo larga 
brecha, afastando aos empurrões homens e mulheres, sob uma saraivada de remoques, 


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queixumes e impropérios.

- Arreda, que lá vem Luzia-Homem, como uma danada! ...

- Mulher do demônio, você não enxerga a gente, sua bruta?! ...

- Esta excomungada está com o diabo no coiro!...

- Vote! malvada! ...

- Ficou como lacraia assanhada, por causa do macho...

Luzia era insensível às queixas e insultos, foi avançando sem desfalecimento, sem hesitação. 
Ao enfrentar a porta, Belota pretendeu tolher-lhe o passo, mas foi repelido com possante e 
rápido movimento. Igual sorte tiveram Cabecinha e Crapiúna. Este lhe não ousou tocar, 
inanido por estranho terror. Surdiu, enfim, na sala, e parou indecisa, espantada por se achar 
entre pessoas notáveis, aturdidas pela surpreendente invasão. Depois se dirigiu a Alexandre, 
que a contemplava estupefato, num misto de assombro e alvoroço.

- Que foi isto, seu Alexandre? ...

- Nada - respondeu ele, baixando os olhos - Um impute, que me fizeram ...

- Mas é falso!... Não é?...

- Juro por alma da defunta minha mãe...

E grossas lágrimas lhe deslizaram pelas faces tostadas, embebendo-se na barba crespa e 
aloirada.

- Seja homem, Alexandre - disse-lhe então a moça, com voz vibrante e enérgica - Deus é 
grande!... Quem não deve, não teme! ...

- Choro de vergonha, porque nunca me vi em semelhante desgraça...

Ela, animando Alexandre com a protetora carícia de um olhar inefável, voltou-se resoluta e 
calma para os circunstantes. Do desalinho das roupas, o lençol pendido do braço a arrastar 
pelo chão, o cabeção de renda emoldurando o seio nu e palpitante, as desgrenhadas 
madeixas a lhe caírem em ondulações fulvas de serpentes negras; dos olhos, do gesto e da 
voz, um concerto de convicção e firmeza, irradiava sobrenatural encanto, empolgando o 
auditório, subjugado pela esplêndida e fascinante exibição da força e da beleza, 
harmonizadas naquela admirável criatura.

- Saberão vossas senhorias - exclamou, em vibrações fortes e sonoras - que este homem não 
é nada meu!... Nem parentes somos, senão por Adão e Eva. Posso morrer sem confissão. 
Meu corpo não tem pechas, nem pecados a minh'alma...

E estendeu os braços, num gesto largo e franco de inocência que se exibe:

- Entre essa gente maligna que faz pouco de mim, essa gente desalmada que me persegue, 


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como se eu fora uma excomungada ou um bicho brabo, encontrei nele um amigo, um irmão; 
e hoje, abaixo de Deus, é ele quem me ajuda a sustentar os dias de minha mãe, entrevada 
dentro de uma rede. Estas noites temos passado juntos fazendo quarto à pobre velha que 
gemia com dores de fazer cortar coração. Hoje, de manhãzinha, esteve lá em casa e pedi-lhe 
que fosse procurar o doutor... Ah! meus senhores, até os bichos são agradecidos, quanto 
mais criaturas cristãs. E aqui está, em pura verdade, porque eu puno por ele e juro que está 
inocente...

- Não temos provas - observou o Delegado - Por ora só há contra ele suspeitas, indícios...

- Então por que o prenderam? Pois se envergonha um homem sem quê nem para quê, por um 
impute?...

Em benefício dele; para apurar a verdade...

E se não conseguirem isso? - perguntou Luzia impaciente - Ficará preso toda a vida?!...

- Não se aflija - ponderou o promotor, intervindo, e no intuito de amenizar a pungente cena 
- Sente-se, repouse. A senhora está muito exaltada, acalme ... Que estupendo tipo! Que 
formoso cabelo - observou à puridade, voltando-se para um dos comissários.

Luzia reparou, então, em seu desalinho, e sentiu um calefrio de pejo, como se a lambessem 
aqueles olhos que a fitavam com insistência, olhos mortos de volúpia. Colheu os cabelos, 
toda aflita e ruborizada; enrolou-os rapidamente, e os prendeu com um gesto gracioso no 
alto da cabeça, e abrigou-se no lençol branco de babados de cambraia de salpicos.

- Donde é natural? - inquiriu o Promotor.

- Eu me chamo Luzia Maria da Conceição. Sou filha do Ipu. Meu pai, que Deus haja, era 
vaqueiro das Ipueiras do Major Pedro Ribeiro... Está ouvindo, seu doutor?

Ela aludia a gritos e gargalhadas do povilhéu, bradando na rua: Luzia-Homem!... Metam ela 
na cadeia que se descobre tudo!.. Aviem os pobres que estão aqui esperando com fome!..

- Por que lhe deram essa alcunha?

- Eu lhe digo, seu doutor. Desde menina fui acostumada a andar vestida de homem para 
poder ajudar meu pai no serviço. Pastorava o gado; cavava bebedores e cacimbas; vaquejava 
a cavalo com o defunto; fazia todo o serviço da fazenda, até o de foice e machado na 
derrubada dos roçados. Só deixei de usar camisa e ceroula e andar encoirada, quando já era 
moça demais, ali por obra dos dezoito anos. Muita gente me tomava por homem de 
verdade. Depois meu pai, coitadinho, que era forte como um touro, e matava um bode 
taludo com um murro no cabeloiro, morreu de moléstias, que apanhou na influência da 
ambição de melhorar de sorte, na cavação de ouro no riacho do Juré. Daí em diante, 
começamos a desandar. Minha mãe, sempre muito doente, e nós duas muito pobres de tudo, 
menos da graça de Deus, vendemos as miúças e cabeças de gado, que tiramos à sorte da 
produção da fazenda, os animais de campo e até o meu cavalo castanho-escuro, calçado dos 
quatro pés e com uma estrela na testa ... o meu querido Temporal... Tudo isso para não 
morrermos de fome quando veio esta seca...



[Linha 1300 de 6979 - Parte 1 de 5]


Soluços lhe embarcaram a voz, e desatou em copioso pranto.

- Sossegue moça - disse-lhe o Delegado compassivo - A sua sorte nos interessa. Está entre 
amigos de quem só deve esperar benefício; mas ... é preciso ter paciência. Alexandre tem 
por defesa os melhores precedentes e todos o abonam; entretanto é indispensável que fique 
detido enquanto duram as diligências do inquérito ...

- Preso?! ... Não é possível! - exclamou Luzia - Vossa senhoria não fará tamanha injustiça. 
Eu lhe peço por vida de seus filhinhos... Alexandre é inocente! ...

E rojou-se de joelhos, aos pés do Delegado.

- Tenha paciência! - murmurou este comovido, e tentando erguê-la.

Luzia não se conformava com a horrível idéia da prisão; e continuou a suplicar, muito 
condolente.

Alexandre já não podia suportar aquele espetáculo, que lhe macerava a alma. Suspirou de 
alívio quando o Delegado mandou conduzi-lo; e, ao passar por ela, disse-lhe com firmeza:

- Tenha coragem. Cadeia não se fez para animais. Espero em Deus sair limpo desse impute 
que me levantaram ... Vá para junto da tia Zefa que eu me arranjo...

Tanto que o preso partiu escoltado pelos soldados Belota e Cabecinha, Crapiúna assomou 
na sala, mesmo em frente de Luzia, cujo olhar dolente acompanhava o moço e se fixava na 
porta por onde o levaram. A figura do soldado, detestável de arrogância triunfante, 
substituindo o preso, no campo da visão desvairada, interrompeu imediatamente a 
aniquiladora impressão de mágoa; e a moça, transformada por encanto, estremeceu num esto 
de ódio, que lhe faiscou no olhar, como um corisco.

- Aqui está, seu doutor - exclamou ela, indicando o soldado, com um soberbo gesto de 
indignação - Aqui está o asa-negra que me persegue, pensando que eu sou da laia dele... 
Este homem me atormenta com malcriações, com cartas... Espere... Tenho uma comigo...

E retirou do seio, de envolta com o cacho de cravos murchos, a última, carta de Crapiúna.

- Eis - continuou trêmula de cólera - a carta que este... não-sei-que-diga... me mandou 
hoje...

O Promotor tomou a carta; leu-a, sorriu-se e passou-a ao delegado, segredando-lhe:

- Há, talvez, em tudo isso um drama de amor.,

- De pouca vergonha, seu doutor, atalhou Luzia - Ele devia saber que sou uma rapariga 
direita...

Depois de ler a carta, voltou-se o Delegado para o soldado, que até então mantinha ares de 
basófia:

- Que quer dizer isto?...


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- Saberá vossa senhoria que não é nada... - balbuciou ele, sorrindo irônico.

- Nada!... Que significam as suas palavras de ameaça?...

- É um modo de falar para fazer medo e caçoar com ela... Negócio de namoro...

- Namoro, seu atrevido... Pois o senhor fica responsabilizado por qualquer falta de respeito, 
ou tudo quanto suceder a esta moça... - Por causa disso - observou o escrivão Antônio 
Rufino - é que ele foi removido da polícia do Curral do Açougue...

- Eu não quero fazer mal a ela, seu Delegado. De mais a mais não é crime a gente querer 
bem e pretender uma moça dessas...

- Não admito observações. Retire-se... Veja como se porta!...

Crapiúna fez continência e deu meia volta, com inexcedível garbo militar, lançando a Luzia 
sarcástico olhar de desafio.

- Vá descansada, moça - disse-lhe o Promotor, com meiguice - Sua mãe reclama os seus 
cuidados. Quanto a Alexandre, a justiça empregará todos os meios e esforços possíveis para 
descobrir o verdadeiro autor do delito. Estou persuadido que é inocente.

- Deus lhe pague, meu senhor... Deus lhe dê saúde e felicidade... Queira perdoar a minha 
ousadia... Fiquei fora de mim... - Suspirou ela, com lágrimas na voz.

E compondo as dobras do amplo lençol de mandapolão, saiu lentamente, 
desconsoladamente, acabrunhada de dor e vergonha.

O Promotor voltando-se, então, para o Delegado e os Comissários, ponderou:

- Não será esta carta um indício precioso?... Na minha opinião, deve ser vigiado aquele 
soldado.





VIII



Teresinha informara a tia Zefa do caso de Alexandre, procurando, com tortuosas e vagas 
digressões, amortecer o choque demasiado rude, e substituir a filha ausente, preparando o 
caldo, ,ajudando a velha a mudar de posição, e convencendo-a de tomar o remédio, que 
tinha um sabor mau de azinhavre.

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Luzia Homem - Parte 1 de 5 -  Domingos Olímpio
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Luzia Homem - Parte 2 de 5 -  Domingos Olímpio
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Luzia Homem - Parte 3 de 5 -  Domingos Olímpio
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Luzia Homem - Parte 4 de 5 -  Domingos Olímpio
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